Faltavam sete minutos para as cinco da tarde. Thomas poderia
simplesmente sair, divagar pela rua, retardar o passo, caso necessário, até o
encontro, às seis e meia. Mas deliberara sair às cinco horas, e isso parecia
aprisioná-lo no quarto do hotel. Sempre fora assim: metódico, lento,
consciencioso, “chato”, maníaco. Sentou-se na cama, abriu a cortina e olhou
através da vidraça: carros no estacionamento, movimento intenso na rodovia à
frente, funcionário do hotel com uma mangueira no jardim. Thomas voltou a
percorrer ansioso o quarto, lavou outra vez as mãos e outra vez olhou-se no
espelho, repetindo o gesto de passar a mão pelos cabelos curtos, perfeitamente
penteados.
Cinco horas. Thomas desligou o ar-condicionado, abriu a
jaqueta e saiu. No lobby do Itacaiúnas, tirou a mão direita do bolso da jaqueta
e acenou para os dois atendentes. Recusou com a cabeça o oferecimento para um
táxi. Ganhou a rua devagar, como indeciso, a cabeça baixa.
Desceu pela via à esquerda da avenida VP8, contra os carros,
o sol de claridade ainda intensa, mas de temperatura amena. Thomas fechou a
jaqueta, como se o frio aumentasse. O encontro aguçava-lhe de tal forma a
ansiedade que suava gelado.
Avançou com a cabeça sempre baixa, a evitar os olhares das
poucas pessoas que vinham. Em certo ponto, à margem, uma cavidade com grama
reduzia o espaço entre o meio-fio e a passagem dos pedestres. Thomas parou,
olhou à frente, vinha uma moça de uns dezenove anos, como ele. Aguardou, com a
cabeça erguida, ela passar, e notou-lhe a surpresa ao fitá-lo – ela hesitou,
baixou a cabeça e prosseguiu. Ele então avançou, constrangido – a moça por
certo estranhara sua palidez extraordinária, que produzia um constante ar de
doença, e havia ainda a jaqueta para frio, sob o sol e o clima seco de Marabá.
A primeira imagem que Thomas Uchoa Azevedo tinha de si mesmo
lhe fora apenas narrada pela mãe ... pela tia... pela tiamãe, na verdade: ao
lhe rasgarem levemente o pé para o teste do pezinho, o sangue raiou e sua mãe
biológica chorou de alegria, de forma inexplicável: chorava, chorava, abraçava a todos chorando, nitidamente
de alegria, aliviada por algo que os outros desconheciam. Alguns dias depois,
quando saiu o resultado tranquilizador do exame, simplesmente entregou o bebê à
irmã, em Belém, o rosto triste como se fosse morrer a qualquer momento, e
foi-se embora, sem nada falar, sem justificar - entregou o filho à irmã e
desapareceu.
Criado pela tia – mamãe, mamãe – mãe - sempre melancólico,
como se soubera sempre não ser filho verdadeiro, arredio como se sempre sentira
que o padrasto não era seu pai, que, por mais que todos se esforçassem, sua
origem não estava ali, como se pressentisse que havia um destino e por trás desse
destino um segredo mortificante.
Quando Thomas tinha cinco anos, na volta da escola, já na
entrada do prédio onde morava, uma mulher aproximou-se em silêncio, “Não, não,
não!”, ouviu a mãe gritar, “Sim, Natália, e, por favor, não tente evitar”, a
mulher falou, enérgica, “Mas, mas - o que você tá fazendo aqui?”, a mãe
indagou, “Vim me despedir”, a mulher falou, “Escuta, Rosana”, a mãe tentou
reagir, “Não adianta, Natália: vamos subir! Tenho apenas alguns minutos!”. Subiram.
Em silêncio. No apartamento, Natália ainda tentou que Thomas aguardasse no
quarto, mas a mulher, Rosana, foi inapelável: “Thomas, você é meu filho! Você é
meu filho, entendeu?!”. Rosana!”, Natália ainda gritou, mas viu que era inútil,
calou-se, resignada, “Thomas”, disse à criança, “Essa é minha irmã, Rosana”,
“Sou sua mãe! Vim aqui apenas te dizer isso. Sou sua mãe!”, repetiu a mulher. “Quando
você crescer, se quiser saber mais sobre sua vida, vá a uma cidade chamada
Marabá”, “Rosana, não, o que você...”, Natália gritou avançando contra a irmã,
“Em Marabá, tem um lugar chamado Diamante Negro – se algum dia você quiser
saber mais sobre sua vida, vá a esse lugar!”. Então Rosana abraçou apertado o
menino atordoado, beijou-o muito, abraçou-o de novo, e, sem ouvir-lhe uma só
palavra, correu para a porta e saiu do apartamento como se não tivesse um
minuto a perder. E não tinha. Quase quinze anos depois, Thomas saberia que a
mulher, Rosana, sua mãe biológica, morrera de infarto dali a minutos, na saída
do prédio.
Depois daquele dia, o menino ficou ainda mais arredio, e por
meses fez à mãe, todo dia, perguntas que ela não sabia responder, ou não
queria, ou não podia. Aos poucos, foi esquecendo, mas seguiu sempre triste e
solitário, com raros amigos, e sem demonstrar maior intimidade nem mesmo com os
pais ou parentes próximos. E começou a se intensificar nele uma palidez
mortiça, veemente, nunca explicada pelos médicos, que sempre negaram o
diagnóstico de anemia. E Thomas passou a sentir frio – às vezes em pleno sol,
na praia, queixava-se de frio, batia mesmo o queixo, chorando, desamparado, e a
mãe só pensava que era algum trauma, alguma indução psicológica, mas nenhum
psicólogo ajudou de fato o garoto a superar a solidão e os hábitos estranhos e
arredios.
Thomas também nunca suava – podia andar, nadar, correr,
pegar sol - nunca suava. Ou, sim – suava, levemente, como se tivesse o rosto
coberto por fina e gelada camada de óleo, mas apenas de frio – nunca por
exercícios físicos ou quentura. Suava de frio, e muitas vezes, nesses momentos,
chorava em silêncio e lutava para ficar sozinho, onde estivesse.
Com o passar dos anos, Thomas conquistou uma rotina que a tiamãe
sabia ser sofrida, mas sem queixas – estudava durante quase todo o dia, via
muitos filmes, em casa e no cinema, nas raras vezes em que saía de casa para o
lazer, não tinha um só amigo mais cativo ou assíduo, e não falava mais da mãe biológica.
No dia em que completou dezenove anos, um mês atrás, Natália confirmou-lhe que
Rosana não desaparecera, estava morta: morrera minutos depois daquela aparição
e da despedida atribulada no apartamento. Dois dias depois, o rapaz comunicou à
mãe adotiva que iria a Marabá, encontrar um lugar chamado Diamante Negro.
Mãos nos bolso da jaqueta, zipada até o pescoço, Thomas se
encaminhava calmamente para o Diamante Negro. No dia anterior, após falar por
telefone com a dona, Marly, aproveitou e passou pertinho, para não ter
surpresas. Já bastava o choque de saber o que era o Diamante Negro e, a partir
disso, a perspectiva sombria do que o aguardava a respeito da mãe.
Após tomar a decisão de ir a Marabá, Thomas recolheu, no
apartamento, todas as fotos da mãe biológica, fez reserva no Itacaiúnas por
telefone e leu na internet vários textos sobre Marabá. A cidade, 250 mil
habitantes, no sudeste do Pará, ficava no centro de Carajás, a maior reserva
planetária de minério de ferro de alta qualidade. A cidade viveu sempre de
acentuados ciclos econômicos – caucho (borracha), diamantes, castanha-do-pará,
ouro, ferro, pecuária, ferro-gusa e, às vésperas de festejar o centenário, em
2013, se preparava para industrializar aço. Os ciclos trouxeram e levaram
migrantes de todos os Estados, aventureiros, grileiros, chegavam e partiam sem
maiores raízes. Mas, aos poucos, Marabá moldava sua face, muitos maranhenses,
goianos, tocantinenses, foram ficando, se assentando, e os estudiosos concluíam
que, finalmente, a cidade de fato não apenas misturava migrantes, mas os
fundia, os amalgamava, os convertia numa cara própria. E qual era essa cara,
Thomas se perguntava, andando pela cidade que contrastava a riqueza ostensiva
de uns com os aspectos interioranos e provincianos da maioria; a música
sertaneja de baixa qualidade parecia onipresente, todos os recantos, todos os
bairros; na Praia do Tucunaré, quatro meses ao ano (nos demais, a areia era
toda coberta pelas águas do Tocantins), grassava o tecnobrega de Belém, que
Thomas também não suportava, mas que, ao menos, rendia o espetáculo dos casais
dançando lindamente, improvisos sensuais, quase que diretamente sexuais.
Foi no Tucunaré (a praia ficava em frente à orla da cidade,
depois da travessia do rio) , num domingo, cinco dias após chegar a Marabá, que
Thomas teve uma experiência “incomodativa”, que ficou a relembrar: numa mesa em
frente à sua (ali havia a peculiaridade de todas as cadeiras ficarem não na
areia, mas dentro da água, submergidas, e os clientes, de certa forma, bebiam,
comiam e tomavam banho ao mesmo tempo) um grupo de jovens se divertia de forma
ruidosa e “indecorosa”. Mostravam-se as línguas, pegavam na bunda uns dos
outros, e Thomas logo descobriu que as mulheres eram prostitutas. O que o marcou
foi uma espécie de beijo, não, não era um beijo, era algo... inominável: um
rapaz, moreno, e uma moça, morena e índia, de olhos verdes – os dois ficaram
mostrando as línguas um para o outro, de longe, a uns dois metros, e a língua
da moça era muito grande, para fora, balançando, e ela conseguia mexer apenas a
pontinha da língua, como uma cobra, muito rápido – depois de recolher a língua,
a moça se sentou, e ficou vários minutos calada, alheia, melancólica, de
repente, alheia, quieta. Aí saíram, para outra barraca, distante, e Thomas
ficou a lembrar aquela brincadeira, as línguas de fora, movendo-se rápidas,
sexualmente grotescas, agressivas, um despudor claramente desafiante, para chocar.
Naquele domingo, ao voltar da praia, Thomas finalmente teve
coragem de descobrir o que era o Diamante Negro, “não é coisa boa, meu filho”,
avisara Natália, “você vai ficar muito mais infeliz, e temo inclusive pelo que
possa acontecer com você”. Para o rapaz, Diamante Negro era apenas o nome de um
chocolate, e de uma descomunal “aparelhagem” sonora, de Belém. O taxista que o
levava ao Itacaiúnas apenas sorriu e respondeu em tom jocoso: “É um cabaré! O
melhor aqui de Marabá. Você vai gostar de lá!”. Thomas não escondeu o choque, o
coração disparou, sentiu-se tão pálido que quase sucumbiu à fraqueza, invadido
por uma vertigem de desmaio. O motorista não percebeu: “Sou amigo da Marly, a
dona de lá – nos conhecemos há mais de vinte anos, de Açailândia, uma cidade
ali do Maranhão...”. Um cabaré! Então, sua mãe... sua mãe... Um turbilhão de
ideias indefinidas percorria a cabeça e o sangue de Thomas, que não se fixava
em nada, fugindo ao maior temor: sua mãe... seria uma prostituta?
Desceu atordoado em frente ao hotel, “Está aqui o meu
cartão”, o taxista ofereceu, “Precisando...”. “Você pode me dar o telefone
da... da... sua amiga?”, “Ah, a Marly, do Diamante... Vou te dar, garoto, mas
olha o que você vai fazer. Qualquer coisa, me liga, eu te levo lá!”.
Thomas quase não dormiu à noite, com sonhos sufocantes, e na
segunda-feira ficou o dia inteiro trancado no quarto do hotel. Outra vez quase
não dormiu e na terça-feira, resoluto, ligou logo cedo para a Marly. Ela não
atendeu ao celular, o que aumentou a ansiedade dele. Ligou para ela a cada
cinco minutos, já irritado, quase desequilibrado, até que ela atendeu, pouco
depois do meio-dia. “Quem diabo é que tá me ligando tanto, hein?”, perguntou
irritada, sem ao menos ouvir a voz dele, “Tem umas trinta ligações...”, “Meu
nome é Thomas. Sou filho da Rosana. Você sabe, a Rosana. Há uns vinte anos,
vocês se conheciam...”. Silêncio. “Alô”, Thomas falou, ansioso, “Alô!”. “Oi”,
Marly respondeu, baixo. “Olha... Thomas, é isso?”, “Sim!”. “Pois bem, Thomas...
a Rosana. Eu não sabia que ela tinha tido um filho... Sua mãe, ela”, “Está
morta”, Thomas disse, seco; “Morreu há muitos anos... do coração...”. Marly
continuou em silêncio. “Preciso falar com você”, Thomas avisou, “Preciso saber
tudo de minha mãe... De mim. Preciso que me fale tudo o que sabe, entendeu?”.
Marly continuou em silêncio. “Posso ir aí agora?”, Thomas pressionou, e Marly
respondeu rápido, como por reflexo, “Não! Quer dizer, não, agora não... hoje
não! Virão algumas pessoas aqui, à tarde... Bem... Amanhã, meu filho. Venha
amanhã, às seis e meia... da noite. Amanhã a gente conversa...”.
Thomas primeiro teve uma sensação de alívio, quase que de
libertação, por estar tão perto da verdade, de uma verdade, de algo que sabia
grave e misterioso, mas que não tinha ideia do que era. Deitava-se,
levantava-se, lavava as mãos, mirava-se no espelho, deitava-se, levantava-se,
andava pelo quarto, evitando especulações, o que seria, evitava, evitava, pai,
pai, sabia que a conversa com Marly teria a ver com o homem que era seu pai,
que ele nunca conhecera e sobre o qual não sabia nada, nada, como se o homem
não existira.
Às três da tarde, Thomas decidiu sair, andou, andou, até a
orla, a uns oito quilômetros do hotel, sentou-se no Predileto, bar no Cabelo
Seco, bairro onde Marabá surgira, na confluência dos rios Itacaiúnas e
Tocantins. Pediu água, depois refrigerante, e por fim uma isca de peixe, e logo
pediu um peixe completo, e o devorou com um apetite que não se lembrava de já ter
sentido. Passeou na orla, viu pássaros, canoeiros, estudantes que atravessavam
para a Praia do Tucunaré, do outro lado do Tocantins, foi e voltou ao longo da
orla, anoitecia, os estudantes voltavam da praia, a travessia em pequenas
rabetas pilotadas por meninos de doze anos, um bar tinha música ao vivo, o
Chaplin, Thomas sentou-se e bebeu água, água, pediu um sanduíche que não comeu
todo, evitava pensar na mãe, no pai, em Marly, no Diamante Negro.
Umas dez da noite, no táxi para o hotel, teve consciência do
quanto seria longa a noite e o dia seguinte, até o encontro com Marly, e quase
cedeu ao impulso de descer do táxi, andar, andar na noite, mas permaneceu
imóvel, tão quieto que jamais alguém pensaria que era sacudido por bruscas e
violentas especulações, absurdos que lhe vinham contra a vontade e se iam à
toa, de nada adiantava especular, perguntar, de nada adiantava, não
adiantava...
Na VP8, à frente, um grande movimento de carros, e as luzes
girantes de duas viaturas da Polícia Militar. “O que houve?”, indagou ao
motorista do táxi, “Nada, é apenas uma festa – quase todo dia tem festa ali, no
Voo Livre”. Thomas decidiu descer, muita gente no bar, show de música ao vivo,
uma dupla sertaneja, o sertanejo que ele não suportava, e que tocava, sim, em
todos os minutos em todos os cantos da cidade.
Havia tanta gente que não se podia andar direito nem ao
entorno do bar, jovens, jovens, as meninas muito sensuais, com roupas de brilho,
as barrigas de fora, piercings nos umbigos, dançavam de forma escandalosa,
mesmo sozinhas, baixavam os quadris, baixavam, baixavam, remexiam como se
estivessem transando, isso mesmo, e, já perto do chão, faziam movimentos
sexuais, como se cavalgassem parceiros imaginários, depois subiam, subiam, sem
o menor pudor, a menor vergonha - só uma vez, em Belém, numa festa de
aparelhagem (a aparelhagem Diamante Negro), Thomas vira tais cenas, como é que
essas meninas podiam dançar assim, como se transassem no meio de todo mundo...
Thomas acabou envolvido pela euforia da música, da dança, da
sensualidade, recusou o balde com seis cervejas vendido por garçons itinerantes,
foi ao balcão, pediu um “ice” de kiwi, era a primeira vez em dois anos que
beberia álcool, primeiro aos golinhos, como se apenas quisesse provar, logo um
pouco mais, um pouco mais, sentia calor no rosto, olhava as meninas de frente,
a cabeça erguida, uma especialmente lhe chamou a atenção, a calça apertada,
moça branca de cabelos pretos, muito branca, os cabelos muito pretos, dançava
só, até embaixo, requebrava, sorridente, notou que Thomas não lhe tirava os
olhos, passou a dançar para ele, requebrar para ele, o garoto fitava-lhe
diretamente os quadris, as pernas abertas, baixa, baixa, sobe, só faltava
gemer, aí uma amiga puxou-a pela mão para irem ao banheiro, ao passar por
Thomas, a garota abraçou-o levemente, brincalhona, obrigou-o a dar um giro
desajeitado de dança e lhe aplicou um selinho na boca, sim, na boca, e se
afastou zombeteira com a amiga, Thomas sentiu-se corar, isso mesmo, ficou tão
desnorteado que quase deixou cair a garrafinha vazia de “ice”, foi ao balcão,
comprou outra, bebeu, circulou, bebeu, circulou, não teve coragem de se aproximar
da garota que o beijara, sentia-se afogueado, frenético, e, súbito, decidiu ir
para o hotel: não tinha táxi, aceitou a oferta de um mototaxista e logo estava
no Itacaiúnas, onde se masturbou de pronto, deitado na cama com os olhos
vidrados no teto; banhou-se sem nojo, esfregou-se muito, deitou-se na cama
outra vez com os olhos no teto - lembrava das meninas dançando, como as coxas
dos parceiros entre as próprias coxas, em pé, requebrando-se naturalmente, e o
selinho, a menina que o beijara de relance, e logo de novo se masturbou, desta
vez com mais calma, os olhos fechados.
Quinze para as seis. Thomas chegou à rotatória que ia dar na
rodoviária, dobrou para o lado oposto, estava a dois quilômetros do Diamante
Negro. Tinha tempo. Diminuiu o passo, tirou as mãos dos bolsos da jaqueta, para
aparentar naturalidade, o trânsito cada vez mais intenso, muitos carros, muitos
carros de luxo, muitas caminhonetes, muitas, muitas, e dezenas, centenas de
mototaxistas. Chegou ao final da rua, outra rotatória, um posto de gasolina –
faltavam 25 minutos. Entrou no posto, comprou uma água, passou a mão direita no
rosto, nem sinal de suor, o frio passara, o que sentia era uma ansiedade
desabrida que lhe impunha um vazio tão grande no estômago que tinha ímpetos de
apertar a própria barriga.
O Diamante Negro não tinha placa, apenas um muro de uns
vinte metros, da cor de chocolate. Bateu na porta de metal. Uma mulher morena,
muito morena, de olhos saltados, lábios grossos, arroxeados, abriu
imediatamente a porta, e não escondeu a surpresa ao ver o rosto do rapaz -
desistiu do que ia dizer, estupefata, baixou os braços e apenas falou “Entre!”.
Não precisou dizer que era a Marly, não estendeu a mão, desviou os olhos do
rosto dele e andou à frente, calmamente, seguida pelo rapaz que outra vez tinha
as mãos nos bolsos da Jaqueta, aberta.
Umas seis mesas, sem toalhas, cada uma com quatro cadeiras, distribuídas
naquela área, metade coberta por um puxado de telhas com as vigas de madeira
preta à mostra. O salão do bar era lá para dentro. Deduzia-se que havia vários
quartos na construção. Um muro separava a área de um pequeno terreno com
árvores e pés de bananeiras, entrevistos por uma grande grade de ferro, com
cadeado. Sentaram-se, um em frente ao outro. “Você deve ter... dezenove?”, Marly perguntou e afirmou ao mesmo tempo;
Thomas apenas confirmou com a cabeça. “Você mora em Belém?”, mas o rapaz
interrompeu-a, brusco: “Quero que me conte tudo sobre minha mãe. Tudo, tudo!
Não esconda nada!”.
Marly ficou um pouco em silêncio, levantou-se e entrou no
salão, usava uma bermuda jeans e uma blusa floreada de decote arredondado, o
que lhe reforçava a aparência “gordinha”; voltou com uma cerveja e apenas um
copo. Encheu o copo, bebeu um gole, para experimentar o sabor, depois bebeu um
gole maior, e pousou o copo sobre a mesa. Começou a falar, pausada, ainda
hesitante, como a encontrar o tom, e na certeza de que não seria interrompida.
“Sua mãe... a Rosana... Ela... tinha vinte e dois anos,
quando apareceu aqui. Veio de Parauapebas, indicada por amiga, a Cris, que já
tinha trabalhado aqui... por algumas semanas. Lembro bem de quando a vi pela
primeira vez – era linda! Linda! Você não tem ideia. Muito branca, os cabelos
muito negros, compridos. Era alta, cheia, sabe, do tipo que os homens acham...
gostosa, é isso: era muito linda, e muito gostosa, o sorriso lindo, dentes
muito brancos, uma pele maravilhosa. Elegante, roupas boas. Via-se que era
menina rica, ou que sempre tinha sido bem cuidada, era até de se perguntar
porque estava aqui, sabe, nessa profissão... Logo, ela tinha conquistado todas
nós. As outras meninas, em vez de inveja, ou competição, adoravam ela, ficavam
admirando... E ela... bem, era muito importante para a casa. Não recusava
nenhum tipo de cliente. Podia ser feio, bonito, negro, branco, jovem, velho. Às
vezes, mesmo em passeios, atendia ao telefone e vinha pra cá, ficar com algum
cliente... Ficava com todos, e tratava todos muito bem. E também tinha um
hábito – às vezes, os homens por aqui, sabe, e ela simplesmente aparecia nua...
andava nua, na frente de todos, linda, tão linda que tudo parava, tudo
silenciava, parecia que até a música da jukebox parava. Fazia aquilo para
agradar, para... ela queria fazer os homens felizes, sabe? Muitos deles,
carentes, longe de casa. Também logo descobrimos que ela gostava de PMs. De
policiais. Ficava com eles, de madrugada. Até que se envolveu com um, o
Edilson... Um sargento, cara péssimo, sabe, se vangloriava de espancar
bandidos, de já ter matado vários... E ele humilhava ela. Ela dizia que estava
apaixonada, e ele se prevalecia. Humilhava, falava coisas desagradáveis. Uma
vez, aqui, na frente de todo mundo, ele recebeu um telefonema, de outro PM, e
disse, se vangloriando, pra todo mundo ouvir: “Estou aqui na Rosana. É. Espera sentado,
que vou já largar minha mulher pra ficar com ela. É, vou ser o caixa dela!”.
Sabe, um sujeito feio, bruto, dizer isso de uma mulher linda, maravilhosa. E o
mais surpreendente: uma dia ela me disse que não gostava dele. Que não era
apaixonada coisa nenhuma. E por que fica com ele, perguntei. Por que deixa ele
te humilhar? Porque ele é sozinho, tem medo, respondeu. Como? Ele é só. Muito
só. Tem muito medo. Você acredita, Thomas...? Outra coisa que ela me disse, que
me surpreendeu, que me deixou estarrecida... disse que nunca tinha... tido um
orgasmo. Isso mesmo. Falou que transava desde os quinze anos. E nunca, nunca
tinha tido um orgasmo....”. Marly parou um pouco, bebeu um pequeno gole da
cerveja, tirou um cigarro da carteira, mas desistiu de acender. Com o cigarro
entre os dedos, os olhos de soslaio sobre o garoto, voltou a falar. “Um dia...
Era cedo ainda, umas oito da noite. Tava quase vazio aqui – quase nada mudou por
aqui... Apenas essa jukebox era outra, sem a tela de vídeo... Alguém bateu no
portão... Eu mesma fui abrir. Ao ver quem era, eu quase desmaio. Como aquele
cabra, aquela lacraia... aquele homem tinha a coragem de voltar aqui... O nome
dele era Armando. Pistoleiro, conhecido em Marabá, Parauapebas, Maranhão.
Ameaçado de morte, procurado pela polícia. Um sujeito famoso pela crueldade.
Você não imagina as histórias sobre ele... Vinha acompanhado de mais dois
homens. Entraram os três, sem falar nada. Olharam em volta, tinha apenas duas
meninas, as duas que moravam aqui mesmo, na casa... A Rosana e a Fernanda, a Fernandinha...
Quando o Armando viu a Rosana... Quando ela o viu... Ficaram se olhando, sabe,
como se tivessem descoberto uma coisa muito importante, uma coisa esperada a
vida toda... Foram para o quarto, imediatamente, sem dizer uma palavra um ao
outro, sem nem ao menos se cumprimentarem. Os dois homens ficaram aqui,
vigiando. De vez em quando, um olhava por trás daquela janelinha, para a rua. O
tempo passou, mais de uma hora, e não se ouvia nada, e nem os dois saíam do
quarto. De repente, começamos a ouvir gritos no quarto, gritos e gemidos. Os
homens ainda correram, a Fernandinha se levantou da mesa, onde estava
conversando com outro cliente, que tinha chegado... Eu parei a caminho do
quarto. Entendi que os gritos da Rosana... não era violência, não era perigo...
Ela estava goz... tendo um orgasmo. Gritava, gritava, você não tem ideia da altura,
eram gritos mesmo, gritos gemidos, muito altos, ninguém nunca tinha ouvido
aquilo... meia-hora depois, os dois saíram do quarto... Ele na frente, ela
atrás, sorrindo. Ele estava extremamente pálido, o bigode fino encravado num
sorriso insinuado no rosto magro, o corpo muito magro, pequeno, com a camisa um
pouco aberta... Thomas... Naquele momento, só ouvimos um grande estrondo nesse
portão aqui, da garagem... um grande estrondo, o portão se abriu todo, e os
policiais foram logo atirando, não queriam nem saber... O Armando nem teve
tempo de reagir, ou não quis... levou mais de dez tiros. Os outros dois homens
também foram mortos... Um horror... Mas o horror maior estava por vir... Quando
fomos ver o corpo do Armando... Foram mais de dez tiros... E não tinha uma só
gota de sangue. Você entendeu? Nem uma gota de sangue, seu pai... ele
simplesmente não tinha sangue no corpo. Você... Como pode ser isso...?”.
Thomas levantou-se, atordoado, caminhou desorientado em
volta da mesa, voltou sobre o mesmo passo, de costas, vermelho, muito vermelho,
“Você... desculpa...”, disse Marly, “Você tem o rosto muito parecido com o
dele... apenas você é muito mais alto...”. Thomas sentiu-se tonto, sentou-se
apoiado na mesa, vermelho, vermelho, “Meu Deus!”, gritou Marly, “Você está
sangrando!”, e procurou ampará-lo, Thomas sangrava, porejava sangue, pelos
braços, pelas faces, não apenas vermelho, suava sangue, minúsculas gotas
vermelhas, “Um médico, chame um médico!”, gritou para Marly, ela se desesperou,
ergueu-se com o celular na mão, “Não, um carro, vamos no seu carro – para um
hospital!”, Thomas conseguiu dizer, antes de desmaiar sobre a mesa, o rosto
assustado e com um breve sorriso.
6 comentários:
Edson...que bom que tenhas postado novos textos! É sempre bom lê-los, uma grande alegria realmente! Sucesso para ti.
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