terça-feira, 26 de março de 2013

Dois relatos eróticos


Ensaio

(A câmera dispara. E, na foto que bate sozinha, uma gota brilhante aparece entre as pernas de Renata.)
Ela era a cara do sol do Rio de Janeiro, diferente, claro, do sol de Curitiba ou Aracaju. A pele já fora mais branca, os cabelos, mais castanhos. O bronzeado era do dia-a-dia, realçado agora para a sessão de fotos; o alourado dos cabelos vinha do excesso de sol mesmo, e combinava com os olhos claros, quase verdes. Rosto esguio, aquilino, nasceu para sorrir, nasceu para brilhar.
Oito pessoas na equipe, cinco homens e três mulheres, todos encantados com o astral de Renata, a Menina do Rio. Ria sonoramente, nua. Sambava entre uma foto e outra. Comia frutas. Se lambuzava de mel nos intervalos da sessão, naturalista. Abria os braços e girava. Não, ela nunca tinha vestido uma roupa antes, nunca tinha coberto os peitos duros, sustidos por elásticas fibras, nunca cobrira o ventre esguio onde os pentelhos foram aparados não por alguma lâmina, mas por uma brisa afiada. Tão à vontade, tão serelepe, tão linda que, que – é, ela parecia não ter intimidade. Completamente exposta. Livre. Uma força da natureza. Mas esse ângulo – o da intimidade – deixava a desejar nas fotos.
Ela parecia já ser de todos, então era de ninguém. Parecia não ter nada a dizer, nada a ouvir. Essa era sua defesa, seu casulo. O distanciamento era a entrega. O desvendamento era sua concha.
Estavam numa casa de montanha, enorme, toda aberta, florida, jardins, cores, vento.
O fotógrafo e a produtora ainda não se preocupavam – quando mudasse de ambiente, talvez um quarto, talvez uma suíte de hotel, aquela intimidade chegaria – Renata era linda e o “receio” não tinha sentido.
Pausa. Renata, em vez de se vestir, resolveu tomar uma chuveirada. Nua, à frente de todos, agora sem as movimentações do trabalho, parece que ela realmente nunca usou roupa.
Quinze minutos de chuveiro, e ela deitou-se no colchão coberto de seda alocado num suporte de madeira construído para o ensaio – sem maquiagem, sem nenhuma jóia, nenhum acessório.
Deitou-se em posição fetal, de lado, abraçando os joelhos, a bunda esguia voltada para as pessoas que desmontavam luzes, mudavam coisas de lugar, recolhiam cabos e rebatedores. Aquela bunda. Oferecida a todos. A vagina levemente entreaberta, o ânus. O sol parecia se derramar no ambiente, enlouquecido.
E Renata, sonolenta. Como se passara o dia inteiro na praia, um cansaço estafante apenas de calor. Quieta, tão quieta que parecia dormir sem sonhos, embalada só por silenciosas memórias. A intimidade. Como se fosse algo físico, que se instalasse, não apenas nela, mas nos outros – invasão. Indiscrição. De tal forma que, sem combinar, sem motivo aparente, a equipe começou a sair da casa – todos. Ficou apenas Renata, deslumbrando a luminosidade.
O que sonhava? O que lembrava? Se uma grande lágrima se formou em seu olho esquerdo, e ela recolheu-a com a ponta do indicador e, sem perceber, levou a mão até a vagina, onde a gota se incrustou, brilhante?
E a luz disparou sozinha.



Estação

Mato fechado. Noite fechada. Lídia não lembra como fora parar ali. Mosquitos. Pequenos barulhos por todos os lados. Algo branco se move sobre as folhas. Parece um bicho líquido. Não. Leite. Leite se movendo. Não se espalhando e escoando – se movendo. Uma mancha branca de um metro de comprimento, meio de largura, irregular, movendo-se para diante. Lídia segue a mancha. Contorna pequenos troncos, pedras. Sobe um pequeno morro. No morro, o leite se espalha, se dilui – e some, escoado na terra em torrões. Uivos. Do morrinho, Lídia vê mais adiante, no alto: não um cão, ou um lobo. Uma pessoa. Mulher. Ela uiva? No alto, sobranceira, a lua cheia. Lídia concentra-se. Não, não é a mulher que uiva. É a lua. A lua uiva sobre a mulher, uiva para a mulher. E a mulher é Lídia, com a cabeça erguida para o alto! Abaixa a cabeça, agacha-se, parece enfiar as mãos na terra. O uivo da lua farfalha as folhas em volta. Lídia acorda.
Demora alguns segundos para saber onde está. Quarto em penumbra. O sítio de Clara. Três semanas, fechando um projeto para conseguir uma bolsa de inglês no exterior. E se curar do fim de um relacionamento amoroso.
Lídia olha serenamente o quarto, os livros, e, pela janela, as árvores lá fora, açaizeiros curvados ao vento forte. Começa a arrumar os pertences – mochila, mala – livros, roupas, papeis, o laptop. Dois sapatos, sandálias. Deixa um sapato de fora, com o qual viajará, e calça uma sandália, para sair.
Na cozinha, um pequeno balaio de palha de palmeira.
No quintal, vai colhendo uma, duas frutas de cada pé: limão; manga de vez; carambola; cajá; caju; cajarana; seringuela.
Entra na casa, as portas abertas, varadas pelo vento, amena claridade. Balaio sobre a mesa. Não. Balaio no chão, entre as pernas abertas de Lídia. Sal. Água.
Ela começa a comer. Manga, azedinha. Um chupão no limão, pouquinho de sal. Carambola, linda, amarelo vivo. Lídia está muito descansada, parece que dormiu doze horas seguidas após uma grande jornada. Lambe os dedos.
Acaricia-se no banho, como se quisesse passar em todo o corpo a mistura de ácidos que lhe ficou pelas mãos.
Uma abelha pousa no sabonete.

Um comentário:

Eduardo Alves disse...

Show!

Quanta imaginação, Edson Coelho. E quanta qualidade.

Os detalhes dão uma veracidade incrível e a sutileza convence.

Parabéns.