Terpsícore 2015
Quando te conheci, senti
vontade de montar num cavalo e dizer: “Corre!”. Ela riu folgazã: propulsiona
incontinências sem se espantar. As meninas de Bragança são animais silvestres.
Luau em Ajuruteua.
Eu chegara no final e
contrariado: só estava exposto ao mar porque um amigo, Jairo, me obrigou a dar
carona.
Danda, Dandara.
Antes de eu a ver,
rejuvenesci vinte anos: sua voz desfibrilou minhas veias como um elixir:
- Amiga, esse cara aqui
tá pra morrer, todo mundo tá vendo – virei-me e ela apontava para o violonista,
bêbado. – Mas ele topa amanhecer na função, se a gente comprar uma cachaça.
A mulher a quem ela
falava riu, deu dinheiro, ri, esperando a minha vez.
Caramba. Nem
multiplicados por dez/meus sonhos chegariam a teus pés. Dandaraê, um acinte de
Circe.
- A gente só quer beber
um pouco mais, mano. De coração.
- Aproveite tudo, moça –
e dei dinheiro.
Direto na mão dela.
Agradeceu com o sorrisão chapado, juntou as doações com os borós da bolsa, já
dava pra comprar a pinga, foi direto à barraca na praia.
As meninas de Bragança
são bichos silvestres.
Muitas se escrevem com
y.
Peyxes.
Às vezes, nos igarapés,
nas trilhas, parece que vão se transformar numa árvore, num gato. Certa vez,
isso aconteceu. Findado o trampo, nossa equipe, um trio, buscou o igarapé.
Quando a garota viu a água, se arrepiou toda, tirou blusa, sandália, calça, e
mergulhou (calcinha e sutiã) sem maiores sondagens sobre profundidade e pedras.
Quando emergiu, a água escorrendo, escorrendo, a moça foi desaparecendo, se
liquefazendo, e virou rio, se desfez toda à medida que escorria. Quando, uma
hora mais tarde, se recompôs e se separou da água, trocou-se, perto da gente –
virou-se, simplesmente, tirou o sutiã, espremeu, se enxugou um pouco com ele,
vestiu a blusa e a calça e se voltou, faceira, como se não conhecêssemos sua
dupla identidade. Botou o sutiã na bolsa e seguiu à nossa frente com as
sandálias na mão. Veja bem: um menino. Havia um menino, do sítio, com a gente.
Coitado.
A moça do luau não era
de Bragança.
Amiga do meu amigo
Jairo, professor.
-Martell, conheces a
Dandara?
- Ninguém tem esse nome
(eu, deslize nº 1).
- Na Bahia tem (ela,
fagueira).
- Esse é o Martell,
nosso escritor, eu já te falei dele. Essa deusa desceu do Olimpo só pra ficar
um tempo com a gente, em Bragança.
- Tudo bem? – eu e ela, juntos.
- A Dandara tá fazendo
doutorado.
- Eita! – sorri
desmilinguido, mas sem tremedeira.
- O Martell fortaleceu
pra cachaça – Danda disse ao Jairo.
- Então tá em casa!
Ela se voltou pra mim, mais
ridente agora que me conhecia:
- A galera já tem um
kit, cara: quando a grana acaba, compramos cachaça e fazemos caipirinha na
hora, onde for.
- E o gelo?
- Faz parte do kit.
- Eficiência!
- Conhecimento!
- Caipirinha é um luxo (eu,
sinceramente).
- Mas endoida rápido (ela,
mestra).
Jairo:
- Abre a bolsa, mulher.
Quer dizer, a bolsa do doutorado.
Ela, rindo-se:
- Ora, bolsinha, don! E
este mês tive que socorrer minha mãe.
- Dinheiro acaba rápido
mesmo (eu, à disposição).
- Hoje nem acabou, a
gente já trouxe a caipirinha pronta! (rs) O kit foi só por via das dúvidas (risos
vários).
- Vacilamos, trouxemos
só dois litros!
Risos todos.
- É nisso que dá
desrespeitar a lua (eu, meio tonto):
- Num-é? (risonha).
E, como se justificasse:
- Somos sete.
Não, não se olha em
volta, para sondar o possível namorado.
- Moça, essa cidade vai
gostar demais de ti.
- Por quê?
- Essa... liberdade.
- Hum.
Deslize nº 2?
- Gostei de você,
Martell – ela me aceitou, poderosa, na moral, como a compartilhar uma música
pela internet.
Deus também desce do
céu, diria o Arnaldo Antunes.
Meu estado de ilusão,
induzido pelo feitiço, durou menos de um segundo – “Quem disse que Vênus tem um
mínimo interesse em ti, sem-noção?”. E ela tinha namorado(a), com certeza,
aquela confiança inabalada, resguardada, e namoro entrançado firme, talvez
casamento.
Dandara, negra como a
luz, negra como um flagrante de veneno, a pele tão urdida em negro que brilhava
lisa, tecedeiras de átomos, fiandeiras de sangue, sangue ao negror, negra como
o mistério, ai, deusa dos desejos, olha pra mim.
A frase que abre este
humilde relato, a do cavalo e da carreira, eu nunca disse a Dandara. (Este
relato é para ninguém ler: só depois que eu bater o catolé.) Veja bem: a frase
foi inspirada por ela, não inspirada nela. Danda a motivou pelo senso de humor,
pelo raciocínio de relâmpagos (que dariam gargalhadas, de igual pra igual, com
o chauvinismo de “cavalo” e “corre”), por ter vivido muitíssimas circunstâncias
(ou seja: minha espontaneidade “pilhou”, formando a frase “do nada”), não pela
compleição, pelas sugestões físicas: ela tinha um pouco mais de um metro e
sessenta, enxuta toda e macia como flor, o rosto delicado, olhos amendoados,
sobrancelha muito arqueada (subia e fazia uma curva quase reta pra baixo, como um
traço de caricaturista, arrematando a expressão chamada beleza e mistério), a
galheira ostensiva dos cabelos que ela arrumava ou não (a única coisa realmente
agressiva na “composição”), tudo negríssimo, uma estranha suavidade, a pele
mais negra que se conhece, a boca acentuada com uma curva sutil na comissura
esquerda (inteligência, ironia, charme), sorriso branco como os buracos negros
do Universo, esplendorosos. Genial, enfezada, encaralhada mesmo, quando preciso
(doida de pedra e fazendo doutorado aos 28 anos), mas delicada, suave, um certo
recolhimento inviolável. Não era alguém a se caçar a cavalo.
Tudo isso entendi nos
quatro encontros que tivemos por bares, casas de amigos.
Dançado separado, o
reggae passaria por uma variação de lundu – dança do acasalamento, portanto. E
dançado junto?
Reggae na Vacaria, os malucos
de sempre e muitos mais, geral acasalando no salão, só pedra bombeando a alma e
deixando o corpo mais aéreo: ela: Dandara, dançando, quer dizer, isso mesmo,
dançando, com a Bia “Vibe” Vieira. Na mesma hora, alguém se intrometeu, um
sujeito que eu conheço, dá aula na Biologia da Universidade. Começou a dançar
com Danda. (Ah, sim: às vezes ela “ficava”, meninos e meninas, mas sem maiores
compromissos: tinha alguém importante em Salvador, eu nunca soube se homem ou
mulher.) Fodeu. Eu dançava desastrosamente. Cerveja.
Em certo momento, ela
começou a dançar só. Dandaraê. Sabia que eu admirava seu talento, e olhou um
pouco pra mim, e se mostrou por alguns segundos.
Caipirinha.
Uma hora depois, alguém
me abraçou, por trás: me prendeu, na verdade, pois tentei me virar e não
consegui: quando moveu o corpo ao ritmo do reggae, eu, sem ainda ver-lhe a
pretitude dos braços, soube quem era. Parei. Danda folgou o aperto, eu me virei
e disse:
- O Décio Pignatari,
grande poeta, fez uma performance com uma garota esgrimista. Ele declamava e
ela esgrimia, palavra e lâmina, poesia e florete. Tive, agora, a ideia de
escrever um poema com uma garota dançando.
- Não diga!
- A palavra, a dança,
uma menina negra...
- Sei.
- Moça, um poema é um
tipo de milagre, nunca esqueça isso.
Ela riu.
- Eu topo! – disparou. –
Vamos fazer!
Apertou meu braço e
saiu.
Tava descalça.
Pensei bastante nela,
mas até que dormi bem, nos dias seguintes. Não acreditava que Danda de fato
toparia.
Nos encontramos, dias
depois, rapidamente, num restaurante, tudo formal.
Pensava mesmo nela, mas
tive a idéia perniciosa de transformar o poema num conto erótico: dança,
palavra, sexo. Um desafio imenso, talvez insano. De qualquer forma, adeus
Dandara dançando pra mim, adeus, reggae, lundu.
Mas a literatura tem
suas forças.
Eu me mudava para um
sítio à beira do rio Urumajó, a quinze quilômetros de Bragança. Encontrei
Dandara na Vacaria, com amigos comuns, numa (minha) despedida descarada, já que
eu moraria pertinho. (Penso no que move a mulher a tomar certa decisão.) Quando
fiquei a sós com Dandara, ela tinha acabado de dar um rolê de carro pra fumar
um.
- E a nossa performance?
– indagou intempestivamente, e quase recuei, por instinto, como se me
brandissem uma faca. – A dança e o poema: cara, isso é mesmo interessante. Como
você tá pensando?
- Bem, eu, bem, seria,
primeiro, você dançaria, pra eu ter idéias sobre movimentos, e tal. (Como os
pintores e os modelos, sabe, a anatomia, as formas...)
- Sei.
- Depois, a gente
poderia montar a performance, ou gravar um vídeo, rápido, eu declamando e tu
dançando.
- Mas?
- Ah, bem, eu fiquei
inseguro se devia mesmo te convidar, e resolvi transformar o poema num conto,
um conto erótico. Palavra, dança, sexo: tudo a mesma coisa.
- Interessante – ela foi
um tanto mordaz.
- Bem, aí, desisti de te
chamar. Achei que você ia desconfiar, quando descobrisse que viraria filme
pornô.
- Ah, ah!
- Resolvi ficar só com a
imaginação.
- Entendo.
- É isso. Pretendo
começar a escrevê-lo hoje.
- Ah, legal.
E atalhou, inadvertida:
- Uma vez você falou
sobre os temas literários... Quando as pessoas perguntam sobre o que você
escreve...
- Ah. Elas perguntam:
você escreve sobre o quê? E eu me
pergunto: você tem algo a dizer sobre isso? Virou uma poética.
- Você tem algo a dizer
sobre isso?
- O quê?
- A dança, a palavra e o
sexo.
- Ah, claro, moça! Ou
não escreveria!
Ela saiu, risandando. Meia-hora
depois, eu me refestelava no melhor non sense, todos rindo na mesa, ela me
puxou de lado e esfrangalhou meu coração como uma esgrimista:
- Eu vou dançar. Pro
conto.
- Eu mato e morro por
ti, moça, jamais seria canalha – alvejei-a, na defensiva mas sincero.
- Ora, ora. E tu “acha”
que eu não sei? – e apertou meu ombro com companheirismo.
Merecimento?
Eu sabia. Ela também.
Ela também? O que sabíamos?
Apaixonado (o
apatetamento, as fugas da realidade, as visões esquizofrênicas, vendo o outro
onde não deve e onde é impossível, o estado, enfim, de débil mentalidade
tenebrosa) era uma espécie de sesta diante do que eu sentia. Quem dera o alívio
da paixão.
Dos micos que paguei
para mim mesmo, delirando, sonhando, elucubrando, anotei um poema em prosa,
improvisei; dos micos que paguei em público, postei o poema no Facebook:
“Dançarino
O rito não é o tempo, é
o espaço. Olho para dentro do corpo. Apalpo o fígado. Os pulmões. Sacudo as
fibras, chamo pelo nome os tendões. Minha cervical é como um peixe crescido
para o ar. O tempo é mais como um gato, imóvel e ágil e sem ressentimentos.
Quero ser o meu corpo.
Sólido como música, como poema. Substituir um pino, uma hélice. Disciplina é
com o mar: disciplina e tempestade. Subir a montanha. Corpo de passagem, o
rito. Passagem para os pontos luminosos, o instante porejando nos tambores.
Quando o corpo fica tão
compacto que emite um clarão. Quando o corpo sangra tudo de uma vez e ganha
asas. Luz linfática, palco, engastes de movimento: quando a lua causa ínguas no
desejo.
Só a verdade é
espontânea. O rito é o desejo e a vontade. O corpo vira potência de vontade.
Como, na moenda, a garapa. E a vontade vira gotículas de tempo atravessando o
clarão. A passagem é a paixão.
As emoções vieram falar
por meus braços. O pensamento para em minha mão, indeciso. Minhas pernas são a
frequência de uma rádio que todos ouviram tempos atrás. O rito é a memória e a
música, o espanto e a chuva. Espremer a emoção.
Sonhei que meu corpo
acordava daqui a mil anos. Aí despertei – estava no futuro. Ritmo tem que ter
asa: viver é ter asas. Voar: construir o movimento, tijolo a tijolo. E
insuflá-lo.
A travessia é a
capacidade de ajustar contas com a dança, com a vida. É o tempo e o tablado: o
tempo dentro do espaço: paciente, obediente. Eu sou a travessia: meu corpo sou
eu.”
Ela curtiu e comentou:
“Eita!”.
Não deu certo. Sempre
desconfiei de improviso em poesia, principalmente por causa da voluminosidade.
Quase removo o post, mas concluí que o mico seria maior.
Foi também dela muita
ingratidão: “chamo pelo nome os tendões” merecia um comentariozinho, nem que
fosse dos tempos de colégio.
Recorrente como uma mala
pesadona.
Ensaiei um trechinho do
conto, crivado de insinuações. E postei:
Anotação 1
“Ela dançava há duas
horas: suada, a contravento, esgalhada a enorme cabeleira black. Sem a blusa,
via-se, abaixo do top, o suor embicar para o umbigo, e atrás, quando ela
rodava, finíssimos fios de óleo se reuniam na calha da coluna, desembocando no
cós da saia. Passei um dedo em seu braço, como a experimentar o suor, levei o
dedo ao pescoço, a experimentar perto da orelha, mas ela espaventou a cabeça e
se afastou, dançando leve, era a dança que dominava, a dança decidia e a dança
ainda não tinha virado palavra.”
Ela apenas “curtiu”.
Fiquei mortificado.
Duas horas depois,
comentou o post: “hum!”.
Caramba! Ela tinha mesmo
tomado a decisão. Viver o conto. Me levantei, andei pela sala, sentei no chão,
encostado na parede: adrenalizado, alterado quimicamente mesmo, como se tivesse
batido o recorde dos quatrocentos com barreiras. Precisava estar vivo.
Eu jamais imaginei que
poria algo à frente da literatura, mas pensava muito mais em Dandara do que no
conto: vivê-lo. Se o conto não fosse
lindo – se não atingisse a verdade poética e se não arranjasse as notas de modo
diferente – nada faria sentido, nada mesmo. Mas, em vez de buscar palavras,
iniciar aproximações entre dança e poesia, eu só buscava aproximações entre
sexo e dança. Sexo que, aliás, poderia não rolar. Por algum motivo, uma frase,
um cheiro, uma revelação, e tudo se perderia, o desejo, a nossa decisão. Eu me
sentia mesquinho como um canalha, e sabia que não o era, estava era apaixonado
e paixão significa desejo: o conto era sincero, verdadeiro. “Minha vida anda
tão boa que não minto. Não preciso!”, um dia eu dissera a Dandara.
Talvez fosse físico. O
conto não me sufocava tanto quanto o desejo por ela. Não era tão urgente,
emergencial. Vital. Todos os setores do meu corpo, da minha mente, me
arrastavam para Danda, aquela cor mais negra que os outros negros, aquele
sorriso sapeca, gentil e delicado, mas malicioso na comissura dos lábios, trepidante,
mulher. E, justiça seja feita, eu pensava mais nela, no jeito dela, no que
conversamos, no que conversaríamos, nas músicas, nos poemas, do que no sexo em
si, nos amassos, se rolassem. Eu sabia, no entanto, que o sexo nas condições
imaginadas do conto (uma moça rara dança, um poeta tem idéias sobre dança,
poesia e sexo, numa transa que dura horas, fundindo emoção, pensamento, carne)
era muito, muito excitante. Era o mais potente do conto. Foi o que me
eletrizara na hora da idéia e o que me leva a encará-lo. Uma colmeia de libido,
salgada. O que não se encaixava? Sim, era preciso que este conto fosse
explícito, ou perderia o veneno que me corrompera.
Era, ainda, isso: se o
conto (se eu) não fosse verdadeiro, tudo se estragaria.
Pois o que era
verdadeiro? O que é a verdade senão a minha obsessão, a minha loucura, meu
desespero? O que é a emoção – negue, palavra – senão a minha insegurança diante
da beleza, minha humildade frente às coxas da poesia, senão a superfície do
agora, a pele, único poema do meu corpo e da minha alma? “A poesia do corpo é
abjeta”, alguém disse, não foi o Bukowski. Então eu tinha esse confronto, o
conto frente a frente, pela primeira vez, o poema cara a cara, a sua verdade, não era apenas entre mim e
Dandara, era, antes, entre mim e eu. A passagem era um desfecho entre mim e a
palavra.
A dança saberia.
Em condições normais, eu
diria que é chegada a hora da desgraceira. Seria mais eu, principalmente quando
fujo de algo que pode acabar com a minha raça. Mas, óbvio, o momento que se
aproxima é delicadíssimo. Vai resumir cinquenta anos de vida. Vai resumir o
corpo, o espírito, o Eu e o Universo como um verso de Dante.
Estou apaixonado, então
sou verdadeiro.
É possível pensar algo
novo, se diz, mas não contar uma história nova (“Todas as histórias já
existem”). Entendi: se tudo virar linguagem, contei. Não sei o quê, mas contei.
A história não sou eu, ela é que se forma um Eu: a história vira um indivíduo:
é o Eu da linguagem, corpos intrínsecos, sangue e sílabas, pele e palavras. A
história vive, viveu. E
eu? Eu sou o estado em que essas determinações se dão, séries de DNA, fitas de
combinações de letras, atento como um menino passarinhando a capoeira: se a
dança virar linguagem, eu serei o poema. Você tem algo a dizer sobre isso? Sim,
“Dandara!”, é atrás dela que o vento vasculha o mundo.
É chegada a hora da vida
e da morte.
“Posso te apanhar em
Bragança”, eu lhe oferecera ao telefone. “Não, vou de moto”. Chegou às quatro
da tarde, como assegurara, e eu tava mais concentrado – mais tenso? – do que o
necessário. Tirou o capacete, o cabelo se armou todo, “Tudo bem, moço?”, cumprimentou
com um dos meus bordões, “Bem-vinda, moça!”, devolvi. O sorrisão de marfim me
estimulou deveras, mas não desencanei. Blusa branca, arejada, saia bege, ampla,
leve, brejeira, pequenas penas num tornozelo, rosto sem maquiagem. Na boa: pra
dar conta de tal visão, chame aquele Dante, o Aliguieri.
A casa do sítio também
estava em perfeita concisão com o mato, o rio: feita com pequenos tijolos,
“aparentes”, vigas de palmeira, objetos artesanais, culturais, livros, cadeiras
de palhinha e bambu, tudo de bom gosto, criativo, artístico.
- Delícia, essa casa –
Dandara se deleitou.
- É mesmo! – concordei,
sem ainda acreditar que morava ali (o sítio fora cedido por uma amiga).
Dandara percorreu
rapidamente, sem delongas, quarto, banheiro, cozinha, varanda, sala.
- Você toma café? –
ofereci.
- Comi um pedaço de
bolo.
- Tem suco de laranja.
- Eu quero.
Servi o suco.
Ela bebeu a goles
tranquilos, andando para fora da casa, olhando o terreno em volta. O copo
sempre perto da boca, como se o usasse como apoio para pensar.
- Bem, o sistema será
simples: você dança e eu deliro.
- Eu trouxe o celular e
uma caixinha de som. Vai resolver, é uma caixinha potente.
- Moça, se depender de
mim, a gente começa é logo.
- Tudo bem.
- Mas, antes, vamos
fumar um baseado.
- Beleza.
Fumamos, em silêncio,
ela ainda absorvendo árvores e distâncias.
- Cara, parabéns pela
cidade de vocês. Bragança tem feitiço.
- Tem identidade, né?
- É mesmo! Bragança não
quer ser outra cidade.
- São séculos de
história, minha cara. Miscigenações, cultura, natureza, charme e a melhor
farinha do mundo.
- Pior que é! – riu.
- Bragança é
interiorana, mas não remete ao tédio, e sim ao estado poético.
- Hum, é mesmo! Você
mora há quanto tempo aqui?
- Dois anos!
- Que jóia.
(Percebi que ela evitou
falar quando voltaria pra Salvador.)
Rimos de nada, eu
relaxava.
- Pensei em começarmos
ali, na beira do rio.
Ela olhou para o riozão
transparecendo embaixo, depois de um amontoado de árvores (diversas, nativas) e
de uma faixa de mangue.
Danda se aproximou
devagar, conectou a caixinha ao celular e logo se ouviu o Arraial do Pavulagem
cantando Bragança: “Me alembrei de Ajuruteua/Tô com saudade do mar”. Dandara se
voltou para o rio, espontaneamente, como se o simples fato de ter água perto a
obrigasse a um ritual. E dançou, de costas para mim, de frente para o Urumajó,
dançou para a Amazônia. Devagar, como se se alongasse antes de uma explosão
muscular. Ela era capaz, nitidamente, de convulsionar o ar como as turbinas de
um Boeing e tive a certeza de que eu morreria, a qualquer instante, de debilidade
emotiva.
“Não adianta, caro
Martell”, eu tentava conformar a mim mesmo: “agora não é a hora de entender o
que acontece agora; depois, já passou”.
Tudo o que se move encontra um termo: se agasalha, se choca, se transforma. Um
fecho, um portal. Agora é a rosa que não botarei em teus cabelos, pra virar
poesia.
Danda se voltou de uma
vez, brusca, como as mulheres a flagrar os homens lhes bispando as bundas: e eu
não a via. Eu via mais o que ela inspirava do que ela mesma, o rio atrás.
Samba. Dandara aumentou um pouco o som e começou a dançar mais linheira, mais
integrada, empinada.
A dança tá dizendo para
o conto que a vida é dura e linda, que a vida é mágica, que a vida tem coragem,
que a vida é foda.
Ela tá dizendo que a
vida vai durar um número inteiro entre os pendões, a vida é esse vento
enveredador bamboleando os bambus.
A dança demonstrando à
palavra: infinito. Todas as Leis de Newton. Samba: o tempo feliz.
A mim, pessoalmente,
Danda comunica uma sensação extraordinária, “superior”; como se meu corpo
sofresse um up-grade de satisfação: uma espécie de otimização, de purificação
dos sentidos.
- Por que você acha que
eu aceitei?
Precisei sair da viagem,
recuperar a pergunta, processar que era sobre estar ali.
Caramba. Vai começar a bagaceira.
Caramba. Vai começar a bagaceira.
Viera ajudar a gerar um
conto, um texto, certo? E, desenrolando um longevo interesse, talvez provocar
um sexo de fulminâncias imponderáveis. Isso nunca fora ocultado, de parte a
parte, olhares, anuências, mensagens. Mas, sim? Hum, ela não estava ali só pra
ajudar, ou por uma transa de ribalta (é forçoso admitir que não desperto tanta adrenalina).
Ela fazia doutorado numa área da Biologia, mas estudara dança contemporânea até
os vinte e dois anos. Estava ali para concretizar alguma coisa, para realizar
alguma especificidade. Uma experiência. Uma pequena história formada pelo
conjunto de suas melhores lembranças. A dança. Um poeta, uma moça linda de
vinte e oito anos, um up-grade experiencial, gemas vermelhas da linguagem. Instantes
chamejantes de passado e de futuro. O resumo da vida, da ópera, o conjunto:
contra o arrependimento ou a frustração. Não era, para Danda, dança = palavra =
sexo (dançapalavrasexo, meu conto), era dança + palavra + passado, presente e
futuro = ? = instante síntese = ? sexo. A dança, um ajuste de contas,
esclarecedor. Encerrar o rito, obra: para ela, também, naquele dia, o corpo e a
música eram o estado magnético em que muita órbita entraria nos eixos. Essa
moça, ela vai fazer isso por ela, por nós, como uma deusa. Entendi:
- Pela imaginação. É por
isso que você veio.
Danda ergueu a cabeça, e
fiquei em dúvida se pela resposta ou porque já não a esperava; processou
“Imaginação”, sorriu, contemplada.
- Tudo bem, imaginação;
mas, de qualquer forma, é uma palavra muito ampla, quase genérica – ela
desafiou.
- Imaginação é acessar
outro universo, paralelo, interior, é se tornar a arte, o lúdico – tateei. – É
fazer dum jeito que ninguém fez. É fazer o que ninguém fez. Imaginação é peitar
o tempo. Imaginação é aproveitar o tempo. Imaginação é vencer o tempo, se
livrar dele. Imaginação é bater no fundo, pra recuperar o fôlego. Imaginação é
provar que conseguiu. Imaginação é provar que pode. A liberdade tem que parar
de usar a imaginação de forma utilitária (rs).
Imaginação é deixar pra trás, gargalhando, uma montanha unívoca de palácios. (rs) Hoje, entre nós, não é de
inteligência pra inteligência, de personalidade pra personalidade. É de
imaginação pra imaginação.
Danda riu, erguendo a
cabeça, parece que o vento lhe deu um repuxo nos cabelos – então ela girou como
se o corpo gerasse novas baterias e dançou para o rio, de costas para mim, e o
rio bragantino sofreu uma interferência – breves ondulações lunares, de margem
a margem – na maré.
- Sonhei, agora mesmo,
que tens algo da lua, e que interferiste nas ondas do rio.
- Foi o fumo.
- (rs) Sério. Geraste uma pequena onda – e eu apontei – que atravessou
todo o rio.
- Cara, uma vez, em
Salvador, fiquei tão emocionada, na beira do mar, num ritual de candomblé – eu
chorava, sabe, eu tava muito, muito sensível, muito feliz, eu tinha passado em
dois vestibulares, tinha feito as pazes com minha mãe... Me senti o mar, sabe,
senti que poderia me transformar em mar, e percebi de forma diferente o vento,
a noite. Sei que parece um clichê, mas me senti como os elementos em volta, um
êxtase muito, muito ducaralho. Até hoje me arrepio, quando lembro. Foi ao mesmo
tempo natural e sobrenatural, entende?
- Aqui tem muito isso.
Sempre brinco que as meninas de Bragança são animais silvestres!
- Sei!
- Tem menina aqui, pelas
trilhas, que de uma hora pra outra vira árvore, borboleta.
Ela sorri:
- Não tenho dúvida.
Bragança é legal demais, cara.
Fico calado, sento-me à
mesinha de plástico branca, olho em volta.
- Fala logo – ela
relampeja.
- Bem, é que preciso ter
ideias sobre sexo, mas tô respeitando demais você (rs). Não tô conseguindo te
olhar de forma livre, sacana, e pegar pesado nas ideias.
Ela hesitou diante da
naturalidade, absorveu, devolveu:
- Qual o bloqueio?
- Acho que é porque olho
pra você com mais desejo que imaginação.
Ela de novo hesitou,
desabituada a não comentar na lata, e pareceu tomar outra decisão:
- Eu vou te ajudar.
Tirou a blusa, ficando
apenas com o top de um biquíni de praia e com a saia e a calcinha.
Riu:
- Quer saber? Viaja!
Prometo não olhar nos teus olhos.
Senti uma polução
lançante, medo até de empastar a cueca e a bermuda. Ela começava a me dar.
Tudo. Tudo o que eu fosse capaz de imaginar. O que tá acontecendo neste
momento?, só se a vida fosse uma arte, diabo, meus miolos fervilhando, virando
melaço. O conto disse à dança que precisava ir ao prumo da Terra e rodar. O
conto disse que o desejo era uma sereia punçando a orientação dos golfinhos.
Reggae.
Se eu fosse maleável,
como uma roupa de seda, me ajustaria ao corpo dela por trás, esfregando o pau
em suas nádegas, e entre as nádegas, quase incorpóreo, de forma que ela
dançaria, giraria, se movimentaria, desenvolta, e eu continuaria me esfregando
nela, galado: sexo preservando todos os movimentos da dança, sexoreggae,
sambasexo.
O conto tá dizendo que
eu queria fazer tudo com ela, tudo, tudo com adoração.
- Cara, tá começando a
esquentar – e por um momento ela ergueu a saia completamente, pernas, penas,
coxas, a calcinha rosa, e se abanou com a saia, o corpo tinindo de suor.
- Vou te contar uma
história absolutamente real, que aconteceu comigo em Salvador.
Hum.
- Eu estudava dança,
como já te falei, com uma bolsa de um projeto social. Uma vez, depois da aula,
permanecemos, eu e outra menina, ensaiando alguns movimentos. Tínhamos uns
dezessete anos, ela era branca como uma russa. Não nos falamos. Era estranho,
porque ela gostava de mim, já tinha me dado dicas, mandado textos e vídeos pela
internet. Não sei, ali, por alguma razão, não nos falamos, e estávamos só nós
duas. Flagrávamos nossos corpos nos espelhos, reflexo do reflexo, e isto, sim,
compartilhávamos, como se em segredo, não que a gente tivesse dissimulando o
desejo, tava era gozando a sutileza na hora de permitir esse desejo. Nos
inclinávamos, à distância, abríamos, dobrávamos, roçávamos, rolávamos, suávamos,
uma para a outra. Ela era nossa melhor dançarina, tinha um domínio incrível do
corpo, cada detalhe, incrível mesmo. Quando sua perna fraquejou, refletida, eu
a fitei apoiada nos cotovelos, deitada de costas, as pernas cruzadas contra a
parede espelhada. Ela, sabendo que eu a olhava, virou a cabeça e me fitou
diretamente, gozando, gozou só com o suor, a imaginação e roçando
sutilissimamente as coxas no clitóris. Gozou para mim, me olhando, até o fim,
até a mais leve contração, até o rosto respirar. Ela era uma garota chique, de
verdade, entende, mas estava lá, apoiada nos cotovelos, as pernas abandonadas
na parede, arreganhadas, mais lasciva que uma gata, a expressão mais lasciva
que já vi em alguém.
Guardei silêncio,
fazendo minhas conexões (“Eu também a estou olhando”),
e Dandara achou por bem complementar:
- Aí ela se levantou,
calmamente, se aproximou, me abraçou forte, com intimidade, sentiu o meu
cheiro, me cheirou ostensivamente, como para guardar o meu espírito, me deu um
beijo de língua e se encaminhou placidamente para o chuveiro.
Danda deu um risinho,
diabólica: roçava sutilissimamente uma coxa no clitóris, na minha frente.
Entendi: suor. Horas e
horas. Precisaríamos de muito tempo, disse a dança; a paciência do preparo
apurando o desejo, cada sabor recolhido, plantado a enxada, colhido numa bacia,
cozido a sutis fogareiros, marinar o desejo, testá-lo, torturá-lo, cevá-lo,
desenvolvê-lo, acumulá-lo, agoniá-lo, toureá-lo, mascá-lo, abarrotá-lo,
sufocá-lo, incendiá-lo, explodi-lo, devorá-lo, transgredi-lo, transpassá-lo –
ela sabia, já tinha feito (com quantas pessoas?), ela faria por nós, essa
garota, imaginação, horas e horas nuas.
Danda deixou cair os
braços, mexia apenas as mãos, se aproximou. Perto demais. (Se eu ao menos
pudesse ajeitar o pau, esmagado dentro da cueca.)
Ela de novo se afastou,
entendeu que eu não teria como resistir.
Teu corpo voa em volta
do meu nascimento - Teu corpo é a roda, é a carroça para transportar o inverno
- Teu corpo é um skate me lampejando pelas ladeiras de Bragança - Nem um
acelerador de partículas reproduz teus movimentos - Às vezes tua mão, brusca,
corta a palavra – Tuas pernas prestidigitam minha imaginação – Entro em estado de dança – Êxtase gestual – O
tempo fica silencioso – Não preciso mais das ideias: mas é agora que elas vêm –
Depois de ti, tudo é palavra – Teu corpo é o camaleão dos meus desejos – Transfiguração
transgressiva: unidade em paradoxo – Confrontar-se é ser mais – Te infringir,
te dessacralizar – Umbigo, virilha, nádega, rego, suor, cheiro, boceta, bunda,
eu quero dançar desse jeito, agora, pra ti, até o desejo se arrastar buscando
um poço – Quando a Dança se separar de ti, quero cheirá-la (à dança) em praça
pública, como se faz a uma cadela – Quero cagar no mato, perto da dança, tomar
banho de rio e voltar só no dia seguinte – Tu, Dandara, e a dança fodem na lua
das noites – Tua intimidade mama numa loba – Tua intimidade badala os meus testículos
– Dançar é uma necessidade tão íntima que o Big Bang, aos foguetes, animou tudo
o que é átomo – Dançar agora é uma moça que vive na água, nunca toca na terra,
não tem barco, não tem canoa, vive de rio em rio, as pernas sempre submergidas,
bebendo o sol, comendo a chuva: até que cede ao apelo das limas e bota azeite
nas estrelas pra gente jantar.
Dançava há duas horas:
inteiramente suada, mesmo a contravento, a enorme cabeleira black esgalhada, à
disposição das tempestades. A cintura era tão enxuta e tão maleável que senti
que ficava doido. Eu via nitidamente, abaixo do top, o suor embicar para o
umbigo, e atrás, quando ela rodava, finíssimos fios de óleo se reunindo na
calha da coluna, desembocando no cós da saia. Ela de novo se aproximou,
esfregando as coxas, o que pode ainda haver além de um desejo assim? Passei um
dedo em seu braço, como a experimentar o suor, levei o dedo ao pescoço, a
experimentar perto da orelha, mas ela espaventou a cabeça e se afastou,
dançando leve um bolero, era a dança que dominava, a dança decidia e a dança
ainda não tinha virado palavra.
Ela de repente parou, de
frente para o trecho de mangue embaixo, lambido pelo rio. Virou-se rápida, eu
lhe olhava os cabelos, acabrunhado, talvez tivesse dado um fora ao tocá-la – e
Dandara, feiticeira:
- Do que você tem medo?
Ponderei o que ela
queria mesmo saber, e se eu dizia logo ou não o que me passava pela cabeça;
preferi ganhar tempo:
- Medo, quer dizer, na
vida, ou neste momento?
- Agora.
- Tenho medo de que, por
algum motivo, quebre a liga, e a gente não transe. Eu me mataria de frustração.
- Ah.
E agiu, cirúrgica:
- Já passamos do ponto
de voltar. Vou fazer isso por nós. Estamos fazendo! Agora fica calminho.
Sorri, tive um insight e
disparei a falar:
- Indagorinha, fiquei me
esfregando em ti, por trás, na minha viagem.
Ela continuou dançando
(Avril Lavigne), desentendida.
- Eu queria ser
maleável, pra me esfregar em ti, te sarrar, sem interromper tua dança: como uma
roupa de seda, ofídica, colada. Assim, a gente poderia transar e dançar ao
mesmo tempo.
Ela tirou o top, jogou
numa touceira de capim, laceou os seios, como se os despertasse, e arrepanhou a
saia, mostrando as coxas. O sol, se pondo, coou-se nas copas e mudou a luz.
Prossegui:
- Daqui a pouco, vou me
aproximar de ti, por trás, alisar tua bunda, esfregar tua vagina, ir e voltar
com as pontas de todos os dedos, ir e voltar, por tua xota, o polegar é um dedo
divino, o mais íntimo, sabia?
Dandara começou a se
masturbar.
- Me mostra a calcinha!
Ela ergueu mais a saia,
desnudou a calcinha, viscosa.
O que é a eternidade
diante desse instante?
Tanto escrevemos – a
filosofia, a poesia – sobre corpos morrendo, corpos humilhados, corpos
trabalhando; o que dizer para esse corpo que se masturba? O que dizer à
vergonha do leite e à do animal chumbado?
- Eu vou me agachar por
baixo de ti, enfiar o nariz na vagina, por cima da calcinha, e aspirar como a
um lança-perfume, inebriado.
- Isso, massageia por
cima da calcinha, e dança apenas com os ombros, assim, leves ondulações, deixa
o desejo jogatinar, deixa o desejo te largar pelos cantos da paixão, surpreso,
indefeso, apresado: tu, leve, entregue, transportada, transponível, mãos e vagina.
- Enfia o dedo, isso,
lambe os dedos, assim, agora massageia o clitóris, com delicadeza e firmeza,
lambe os lábios, fecha os olhos.
- As asas dos teus pés
cultuam a terra.
- Teu corpo é um alarido
de vontades.
- O silêncio te
complementa como uma música de outro mundo.
- Teu corpo não conhece
o silêncio: eis as palavras para a dança.
Respiro, rodopio,
mangueiras, nogueira, casa, palmeira...
- O que é este momento?
Imaginação! – grito num achado, rindo. - Se duas imaginações virassem uma, não
seriam imaginações, caralho! (... giro, mangueira, açaizeiro... ) Eu te
amo! (... mangueiranogueiracasa...)
Faz uma semana que não durmo, pensando em ti!
Dandara se vira pro rio,
devagar, tira a saia. Escurece. Ela empina a bunda, arreganha-a o mais
possível, em pé, as pernas abertas – a vagina, vista por trás, parece enorme, a
calcinha estufada: sumarenta de mucosas, galas que afloram e se adensam. Toca
Beyoncé. Me aproximo. Esfrego diretamente, com a mão direita, por trás, a calcinha
inchada, espraio as pontas dos dedos, tudo encharcado, me abaixo, afasto a
calcinha e enfio a língua fundo, fendendo, entreabrindo os cílios carnívoros.
- Ainda não – e Dandara
sai.
Lambo os dedos. Tiro o
pau da calça. Ela se masturba, olhando pra mim. Eu massageio o pau, lentamente,
espalhando o gosto dela (seu Eu) pela minha língua, papilas. Masturbação a
dois é sexo? Masturbação é sempre sexo? Entre mulheres, tudo é sexo e
masturbação? A diferença entre sexo e masturbação é haver um Outro? É haver
penetração? Penetração de quê? A diferença entre pornografia e erotismo é a
linguagem, a poesia? A masturbação é um tema literário menor? Não se fala na
sala pra não constranger geral? Masturbação é concretizar o amor platônico, ou
o amor físico, da imaginação? Literatura é vivenciar,
não perguntar? Vivenciar a masturbação? Corpo de jogo.
- Esfregar meu pau na
tua xota (eu volto à carga): isso é o mais gostoso. Esfregar, esfregar,
esfregar um tempão o pau no teu clitóris, é o que mais quero, o que mais
desejo. Todas as palavras têm cinco sentidos (Dandara fecha os olhos),
todas as palavras querem servir à paixão. (Dandara fica imóvel, apenas os
dedos se movendo, lentos, ágeis, sonoros.) Hoje, entre mim e ti, é de imaginação pra imaginação (ela afasta a
calcinha, a xana é uma flor inchada por estranho orvalho). Enfiar um
dedo no teu cu, suado e oferecido, por trás, um dedo no cu e dois na vagina,
essas são as palavras para a dança, lamber e chupar teu cu, livrar a língua de
todas as palavras, beliscar todo o teu corpo, queimando as pontas dos dedos. (Dandara
faz uma performance muito lenta, ombros, pernas, os dedos masturbando, ela sobe
a mão da vagina para o umbigo, lenta, aérea, não está ali) Quero que me
chupes como se meu pau fosse um pássaro, que libertas apertando nas mãos (ela ergue a cabeça, dança só com a cabeça,
como uma pianista).
Danda gira de repente,
possuída, as coxas apertadas. Movimenta os braços em todas as direções,
coordenada. Coxas apertadas. A cabeça se move com os braços, como se uma
vontade a atraísse de todas as direções. Coxas comprimidas. Foi viajar pra
dentro de si mesma, voltará mudada. Agacha-se um pouquinho, os joelhos
afastados, os quadris projetados pra frente. Foi viajar. Dedos de volta ao
grelo, vorazes.
Não estou ali, ninguém
está, só as árvores, o rio, os pássaros. A senhorita foi viajar em si mesma.
Quero ser seu corpo.
Ela para, subitamente.
Evitou gozar.
Chegara a hora.
Dandara é que se
aproximou.
Noite.
Eu quis pegar-lhe nos
braços, ela afastou minhas mãos, me beijou rápido na boca, beijou de novo,
agora chupando, nossas bocas arreganhadas, ela não deixava que eu a tocasse,
passou a mão esquerda pelo meu corpo, com a outra desabotoou o jeans, arriou-o,
se abaixou, massageou meu pau, massageou a glande, começou a chupar.
O que é este momento?
(Ao lado, o cheiro do rio, a terra procriada em mangue.) Não é apenas dois
bichos se fodendo, não é apenas um Eu, dois, os conjuntos de experiências, o
que lembramos, o que preferimos deletar, não é só o indivíduo e a indivídua,
não é apenas um ato de libertinagem imaginativa, isto é muito mais do que a
vida, é a verdade originadora, a confluência em que a fala principia.
Nomes pra novas
sensações. Toda palavra urge por te dizer. Tenho medo de esquecer uma letra do
teu corpo. Estou prestes a me lembrar, como um mistério que aconteceu no
futuro. Se virar linguagem, contei.
Envolvidos, eu, Dandara,
por uma onda, uma força, apenas agíamos, quase semi-conscientes. A dança atuava
em nós como um narcótico que viesse no vento, que pingasse de um cipó. A dança
vibrava nos gaviões. A poesia era um transe sincopado. A música umedeceu a
terra. Maior área contínua de manguezais do planeta. Mangues gigantes, não
galhos, mangues-árvores. Biodiversidade rara. Lembro disso e muito mais, meu
amor, minha bragantina da Bahia, a palavra a propagar-se nos duendes.
Dandara gozou logo,
despachada, faceira, mas continuou sobre mim, penetrada, desgrudando o cabelo
da cara. O rosto parecia um fogareiro não extinto cujas brasas se soprassem no
escuro.
Pink Floyd.
Danda quis recomeçar,
montada, mas refreei-a com uma mão na anca. Ela parou, eu disse (disfarçando a
má respiração):
- Tudo bem, eu não vou
gozar agora, então... – ela enfiou três dedos na minha boca e lascou:
- Eu sempre quero mais!
Bendito o burburinho das
baladas prestes a ganharem uma guitarra.
Horas e horas, é isso?
Felizes as mulheres, que podem gozar indefinidamente, quanto tempo fora do
tempo, ao vento?
Marinar o desejo,
torturá-lo, cevá-lo, desenvolvê-lo, acumulá-lo, incendiá-lo, explodi-lo,
transpassá-lo – ela girava-se, experimentava-se, ia, voltava sobre mim, sempre
por cima, ficou usando a imaginação sobre mim, um tempão, eu muito excitado,
sem risco de gozar (uma flor veio do Lácio, cerimoniosamente: vamos aparar-lhe
os pentelhos), ia, voltava, se estirava, penetrava, se despenetrava, chupava,
massageava, se penetrava, erguia os braços, voava, os olhos fechados em gozo,
te fazer gozar me torna puro como a brisa, como a pele, como um neologismo.
Interrompeu-se.
Desmontou-se.
Caramba!
- Tenho uma garrafinha
de vodca na bolsa.
Fomos até a casa, nus
(uma covardia comigo).
Luzes. Água.
Acendi outro baseado,
ela deu um longo gole na vodca.
Passei o baseado, peguei
a vodca, devolvi, ela deu mais um longo gole, eu matei o beck, ela matou a
vodca.
Voltamos pra beira do
rio, ela desligou a música do celular (que tocava sozinho, para o mato), vestiu
a saia e se encostou numa árvore, arrepanhada, arreganhada, os olhos fechados, e
a chupei, chupei, levando choques, e a fodi, fodi, estonteadamente, de pé, abri
os olhos e vi o rio, estrelado como se arregalasse mil pupilas de peyxes,
Dandara gemia, festival de gemas, mil fagulhas no rio, comprimida contra a
árvore, cravei-lhe e descravei-lhe os quadris.
- Huuumuhmahnn! – Danda
se perdeu, contínua, e os passarinhos espantaram os morcegos, e o rio, agora,
parecia uma lâmina de água congelada e, embaixo da lâmina, uma fogueira que se
libertaria a qualquer momento, e galhos viravam borboletas, palmeiras viravam
gafanhotos, natural, sobrenatural, existe esse jeito no cérebro, em nós, existe
um jeito, uma forma, uma imaginação que a palavra deifica, dança
apalavrada no corpo, corpo
empalavrado, te dou a minha palavra, a água perdoando o fogo como uma mãe, enguias
pontes Batman rio foguete tucunarés curimatãs Gothan gato girino a água é tão
pequena que o Universo a cobiçou latadas de ovíporas margens neon e corrimento
resina de estrela escama Kayapó Cayté Ajuruteua meu nome é ninguém a língua
fala o movimento números choro dor suspiro riso desejo teu sexo com o faro de
mil leões cajuaçu fulgor lúpulo abaciamentos meu corpo sou eu ternura tara tesão
drama dado dama diâmetro doida dose dédula danada decassílaba divana dia diabo dandará
dança, um pacto de imaginação, um duelo de imaginações, testemunhos da
imaginação, o estado de transporte, a criação do tempo, a grandeza Imaginação (que
tudo transpassa), o âmbito, a ambiência, a verossimilhança, e é a imaginação,
quando gozamos desferidos, que explode – se desintegra – para sempre
polvilhando os mangues cravados na lama.
Dandara insistiu pra eu
entrar antes no banheiro. (Ela tentou enfrentar o mangue pra chegar ao rio, mas
eu a impedi.)
Saí do banheiro, ela
entrou, calada.
Demorou.
Bastante.
Ao sair, havia peixe
cheirando na brasa.
Ela não resistiu.
Vinagrete, pimenta,
farinha especial.
- É incrível como
Bragança simplifica as coisas! – elogiou.
Nos lavamos, em
silêncio.
- Vou ter mesmo que ir –
disse afinal.
Hum. Entendi: em trinta
e nove segundos, esta história será real.
- Sabe, Martell, hoje
foi muito, muito incrível.
Trinta e dois.
- Eu nunca, jamais, vou
esquecer.
Vinte e sete.
- Você conseguiu, cara:
estamos mesmo fora do tempo!
- Quando eu escrever o
conto!
- Sim! Também, né?
Onze segundos.
- Lindo demais isso
aqui, cara. Também não vou esquecer (montada
na moto).
Zero.
- Adeus, mano.
Fodeu.
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