segunda-feira, 29 de junho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


26 - Chuva

Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém no Reduto e no Telégrafo, onde o cinza luminoso dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e os garotos transpiram pela fala indelicadezas hormonais: essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.

Em quase todo o mundo, a relação dos povos com a chuva é escassa, como se os torós nem existissem ou pudessem ser evitados; na Amazônia, a chuva é cotidiana, íntima, incontornável, “de casa”. Por isso, quando quero amar Belém, digo chuva, e na Feira da 25 a tapioquinha recende como se o cheiro viesse do chão, e no Ver-o-Peso os barcos antigos parecem pintados com texturas na lama da paisagem, e sob a chuva a Praça da República é a mais extensa tela da cidade, e em algumas ruas de Batista Campos faz sol mesmo sob os aguaceiros, e, no Entroncamento, Niemeyer mora numa nuvem e há dois anos não sai de casa, e na Cidade Nova todas as pessoas parecem combinar para sair ao mesmo tempo (tão logo passe a chuva do início da noite), e no Guajará o asfalto respira a ausência de prédios, e no Curuçambá as estradas sinuosas dão à cidade um colar de árvores, e no Benguí piscinas de água natural recebem ameixas e meninos.

É também certo que, quando quero amar a chuva, digo Belém, e se for em São Paulo a garoa torna-se cálida, e se for no Rio, o mar entranha-se pelas paredes das ruas e odora no chope, se for em Ouro Preto, dezenas de poetas se reúnem em silêncio nas ladeiras de pedra com telhado, se for em Brasília, o tráfego flui como o rio de aço de Drummond, se for na Chapada dos Guimarães, as rochas jorram águas límpidas sobre plantas e cristais, se for em Marituba, três ruas pedirão para morar noutro lugar, se for em Benfica, os sítios tomarão um banho de mil anos, se for em Mosqueiro, a água trocará duas palavras com a água e eu amanhecerei no Ariramba ou no Marahu.

Sim, quando quero amar a chuva, digo Belém, nem que fique preso sob uma marquise, nem que o trânsito me retenha, nem que o meu amor espere ao celular, nem que eu chegue atrasado ao Mangueirão, nem que os bares já tenham fechado (à meia-noite), nem que liguem de madrugada para gozar a extinção do meu time, nem que a Perebebuí esteja só buraco (ali perto o Bosque é um pedaço da infância que não envelhece), e na Primeiro de Dezembro (não a João Paulo II, recente-renomeada) amanheci tantas vezes que conheci duas estrelas de seu céu, pois nem agora que a Primeiro de Dezembro foi proibida de ver a madrugada, desisto de dizer Belém, digo Belém e amo essa chuva de todas as horas, de todas as ruas, com suas imagens clássicas, suas calçadas tomadas, a parabólica que os carros fazem em frente ao museu São José Liberto (ex-presídio), estas sensações de Belém tão à flor do corpo que ando feliz da vida com esses temporais.

4 comentários:

Anderson Araújo. disse...

Grande Coelho.

Bonito texto, meu velho.

Te linkei no meu blog, quando puder dê um chega lá.

Abraço.

www.bebadogonzo.blogspot.com

Barbara disse...

VOCÊ ME DÁ INVEJA
SABIA QUE A SUA CIDADE É MEU SONHO DE CONSUMO?
NÃO PRÁ TURISMO - PRÁ MORAR MESMO.
SEI QUE ISSO DIFÌCILMENTE SERÁ POSSÍVEL, MAS AO MENOS MEU SONHO DE CONSUMO NÃO É INSIGNIFICANTE.

ines disse...

Já li o texto.talvez não soubesse a autoria.acho que não foi em jornal não... é belíssimo!(posso também estar enganada).sempre achei que belém é mulher, a musa deliciosa de muita poesia...há os que pedem aos escritores locais que cantem o universal e esqueçam dos tucumãs e dos mucajás, pediria aos escritores daqui que exteriorizassem o 'universal'no amor dos igarapés, das redes e dos rios.
parabéns coelho saudades do senhor
meu amigo

edson coelho disse...

amigos, agradeço a leitura e os comentários no blog. é para isso que ele (eu) existe.