segunda-feira, 6 de julho de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


27 - Metáfora e verdade

Reuniões de família parecem sempre acontecer no passado. Delicioso é reviver, pela memória dos mais velhos, episódios esquecidos e contar também as aventuras. Mas sob um risco considerável: descobrir que certas lembranças, caras, não correspondem à realidade.

Por anos contei, com sucesso, entre amigos, certa história mágica da infância; domingo desses, em oportuna reunião com parentes até de outro Estado, alguém desmistificou tudo: minha história não era tão mágica, pelo contrário: jamais tocarei no assunto, muito menos agora.
Por que às vezes guardamos, como verdadeira, uma “versão” dos fatos? Por que, mesmo adultos, transformamos, sem perceber, fantasia em realidade, e vivemos não mentiras, mas “verdades não-reais”?

Talvez tal “adaptação” não seja só pra fugir da dura realidade, ou apenas pra contar uma história mais rara, “mágica”, de heroísmo. Não é simplesmente um mecanismo para se realizar, no presente, pela memória, o que não se realizou no passado: é mais do que usufruir, como “realidade nostálgica”, o que um dia foi sonho e hoje é invenção.

“Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, sentencia o ditado: ao menos para a mídia, para o vizinho, para os anais. Mas como uma inverdade pode tornar-se verdade para mim, eu que vivi outro fato? Como modifiquei a história original e, em mim, verdadeiramente, a história modificada tornou-se a real - sem má-fé, sem intenção ou “proveito” aparente?

Afirmo, leitor: não é só para ter uma história mais interessante, ou tão somente mudar os fatos pra sobressair-se na narrativa. É que somos (para além do que imaginamos) determinados pela fantasia, pela irrealidade, pela impossibilidade.

Na época da pedra lascada, a metáfora nos criou ou a criamos? Teóricos da linguagem descrevem que nos tornamos humanos quando, milhões de anos atrás, fitamos em volta e em vez de ver, digamos, uma pedra lascada, vimos um amuleto ou uma cunha: vimos uma metáfora, raiz da fala, tronco da abstração, e foi a fala e suas linguagens que nos tornou humanos e depois inventou as maravilhas da matemática.

A metáfora – o ver outra coisa, o aproximar-se de um objeto a partir de semelhanças – nos é constitutivo, assim fomos engendrados, “somos metáfora”.

Sim, mas por que a metáfora vira “verdades não-reais” ou simplesmente mentiras? E em que momento?

A metáfora originou-se do humano – ainda nem existe noutros bichos - e também nos deu origem. Com isso, grande parte dos hábitos e culturas vem, de forma indissolúvel, da fantasia (toda palavra é nomeação: antes de ser definição). Os pilares do mundo que desenvolvemos - a pedra polida, o silício – foram ordenados sobre simulações: “somos” e continuamos metáfora.

Arrisco dizer que vivemos a transição de realidade-simulação para realidade-virtual. A pedra deixa de existir, o dinheiro, o esquilo. E, em vez de um escape para o mundo das idéias, do pensamento, mergulhamos em bytes, animações, ilusões multicoloridas. A metáfora torna-se “real”. Veja-se o sucesso estrepitoso do jogo second life, um universo virtual em tudo igualzinho à: realidade.

Percebe? Em vez da realidade em carne e osso, preferimos a mesma realidade em second life (segunda vida).

Essa “irrealidade do real” demonstra, em parte, porque, nas memórias, modificamos os fatos, puxamos a sardinha para certas brasas: “criar” é da natureza humana, compulsiva, irrefreável.
Além do que, num mundo “irreal”, metáfora é poder - especulação, poesia, calúnia. É, para o bem ou para o mal, “conhecimento”, instrumento de sucesso. De tal maneira que, no cotidiano, “ocultar a verdade” é um expediente indispensável para a harmonia de seres e poderes.

2 comentários:

Anderson Araújo. disse...

me lembrei do "Viver para contar", do mestre Garcia Marques. é isso mesmo. não importa o que voce viveu, mas sim como recorda e como conta isso. imaginação é realidade, meu velho.

grande reflexão. valeu pelas visitas lá no Bêbado Gonzo.

Abraços.

Anônimo disse...

Você continua um sensível ilusionista de seu tempo - continue
"não-crônico" com suas belas criações.
Um forte abraço,
Carlos Paixão