segunda-feira, 17 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


33 - Drácula

Vampiro com dor-de-corno é o motivo maior de chacota entre imortais. Felício nunca se sentira tão humilhado, até limpavam os caninos à sua passagem, e de fato caíra com unhas e dentes diante de Roxana. Para piorar, a história parecia um dramalhão de época: Felício apaixonado por Roxana e a bela dividida entre ele, imortal, e um reles humano: entre um drácula de linhagem inextinguível e aquele sujeitinho passageiro e inconseqüente, poeta de terceira, humano e meloso, mas que diabo - nem quando sugou o melhor do Século Dezenove Felício tolerou o romantismo.

“Palavras! Palavras! Palavras!”, o vampiro não cansava de repetir. “Palavras! Palavras!”. Dor-de-corno é pior que ressaca de rum e pesa mais que a luz da manhã. Felício certa noite quase se ajoelhou aos pés de Roxana, parafraseando o conquistador Vinícius de Morais: “Com aquele poetinha, será o eterno enquanto dure; comigo, será de fato eterno”; mas Roxana, atriz de dezenove anos, estava disposta a representar o drama da morte. Felício apelava: “Se de fato não tens medo, escolhe um tormento de verdade: a minha morte imortal, que precisa fugir, a cada dia, do sol, e, a cada noite, das estrelas”. Mas ela seguia a esnobar. “Palavras! Palavras!”, Felício estava mesmo bronqueado, que palavras teria usado o outro para cegar Roxana?

Felício não poderia simplesmente surpreendê-la e morder-lhe o pescoço, ou Roxana o odiaria pela eternidade. Não poderia transformar o tal poeta em vampiro, ou o aturaria para sempre. E de fato não poderia tornar-se humano, nem que quisesse, “ou eu o faria imediatamente”.

Quanto mais inseguro se sentia Felício, mais Roxana lhe contrapunha argumentos, dizia não, detectava diferenças; parecia que se afastava irreversivelmente, e Felício encolhia-se como um pintinho na chuva.

Pra encurtar o conto, chegou o dia fatal (em que seria conhecido o eleito) e precipitou-se o lado trágico do cômico: Roxana escolheu ele, Felício – “ficaremos juntos para sempre”. Namoraram por horas até ele morder-lhe o pescoço, aproveitando a deixa da aurora; e separaram-se – Felício teve que fugir do sol. Na noite seguinte, reencontrou-a linda, de chapéu no jardim, cantando baladas a esmo; duas horas depois, enjoara-a. Na terceira noite, ele estava tão exasperado que disse a Roxana que já não suportava a situação. Ela descontrolou-se e revoltou-se e ameaçou-se a ponto de Felício revelar que havia uma alternativa desesperadora. Roxana ainda não era 100% vampiro. Podia morrer. Ela matou-se no tempo-limite, duas horas depois. Transtornado e aos prantos, Felício transformou em vampiro o poeta de terceira (para que sofresse também, eternamente, aquela morte) e não é que o infeliz notabilizou-se como o melhor drácula cantor e compositor de boleros?

2 comentários:

ines disse...

Um estilo, independente da "informação" e da "intenção" de quem o constrói, reflete, logicamnte, um individualismo, comento seus textos desde 2007 ,
o primeiro texto que li falava de uma "garça" que vinha numa estação...achei lindo, delicado...aí eu lembrei que conhecia o autor daquela crônica.Depois li uma sobre Nossa Senhora, parecia a coisa mais despretenciosa do mundo, era velada, mas cheia de amor.
Li por semanas a fio suas produções com curiosidade humana e profissional.
Talvez eu visse o que não existia... mas era a minha leitura! Jamais pensei de forma depreciativa!o senhor é bom, é sim!
Sua linguagem tem uma força descomunal, é "masculina", diferente...seu trabalho é feito cm prazer eu sei.
Não haverá mais crítica(...) o senhor já está
além disso , desejo-lhe o céu lá do "Farol velho", cheio de estrelas... muita poesia, muita luz...sou sua eterna leitora "mais feliz delas". O ser é um ser humano muito bom. merece muito amor da vida.
ines

edson coelho disse...

inês, você tem sido minha melhor leitora, e isso resume minha gratidão. por mim, espero que a Terra pare de girar em torno do Sol, mas não você com suas atiladas - nem que seja a cutiladas - críticas.