58 - Açaizeiros
A Amazônia é a maior mãe da natureza e penso, agradavelmente, que nós, paraenses, somos seus filhos preferidos. O mesmo devem sentir os açaizeiros.
A Amazônia é a maior mãe da natureza e penso, agradavelmente, que nós, paraenses, somos seus filhos preferidos. O mesmo devem sentir os açaizeiros.
Estamos num quintal em Mosqueiro, serão 18 horas; noto que uma touceira de açaizeiros disputa espaço com uma mangueira. A mangueira, enraizada, projeta e espalha os galhos, e sombreia várias pequenas palmeiras na disputa pelo sol. Acima da copa da mangueira, porém, balança um açaizeiro que cresceu mais do que os irmãos, e atravessou os galhos e a fronde. As folhas deste açaizeiro-primôgenito, mais verdes que as dos irmãos, atestam a inteligência de sobrevivência da touceira, que concentrou numa árvore o melhor de suas raízes, fincadas em feixes envolvendo raízes de outras espécies. Do jeito que, na vida, disputamos espaços e outros objetivos, e quanto maior o triunfo, maior o verdor.
Veja, no quintal ao lado (em Mosqueiro, os terrenos são quintas) exibem-se outras touceiras de açaizeiros. Duas, a uns quinze metros uma da outra, parecem rivais. Dir-se-ia que adotaram estilos diferentes para competir em altura: enquanto a maior árvore da touceira à direita tem igualmente o tronco mais grosso, consistente sobre as irmãs, a maior da touceira à esquerda é, digamos assim, um palito. As folhas das altas rivais têm quase a mesma tonalidade/intensidade (as da que tem o caule mais consistente são mais intensas, puxando ao musgo). Ambas as palmeiras estão entre as mais altas entre todos os quintais e, como se enxerga, o vento está forte, quase friorento. E nossas duas rivais balançam, não, bailam, em gestual.
O açaizeiro é um dos traços mais lindos da natureza. Mão de artista o desenhou num único movimento (tenho a impressão impossível de que foi de cima pra baixo) com lápis de ponta fina. Aquelas raízes em feixe, cada vez mais fincadas, erguendo-se em contraponto, mais alto, mais alto, e tanto mais alto o açaizeiro, mais parece feito de uma só ondulação com o lápis.
No ar, as raízes viram folhas e cachos, e à medida que estes caem, o tronco alteia-se em nódulos de fibra, que se projetam em novos nós, sempre para o alto, como se o tempo, quanto mais tentasse abatê-lo, mais lhe prolongasse a elegância.
Muitas árvores se protegem do vento com grandes raízes; enfrentam-no, fincadas como braçadas de clorofila. O açaizeiro relaciona-se com o vento sendo esguio. O vento não se choca contra ele, e sim parece atravessá-lo, ou melhor, quase não o toca. E assim desenvolveram ambos tal bailado: o esguio das palmeiras é vergado a partir das pequenas copas (como se o vento as puxasse pela cabeleira) para um lado e outro, e às vezes a linha ondulada do caule verga-se tanto que parece obedecer a forças opostas, apontando para lados diferentes, e é evidente o prazer comum que sentem, árvore e vento, de tal forma que o friozinho que nos acalenta se prolonga por horas: mais do que química, rola uma física nessa noite de sábado, e é como se hoje estivesse tão perfeito que árvore e vento ultrapassassem os próprios limites, e agora a cintura da palmeira está a ponto de partir-se, e lhe podemos até adivinhar-se na ponta das sapatilhas, digo, das raízes e outras terminações nervosas.
O paraense é bom de dança, sabemos, de tal forma que, em qualquer periferia ou interior, os casais girando parecem pré-selecionados num concurso. Mas tirar o vento para dançar, ou aceitar-lhe o convite, de forma que o estar das folhas seja como o estar da dança, e não o contrário, é um capricho e tanto da Amazônia. Pensar que tal palmeira ainda dá o açaí...
Um comentário:
Este texto é lindo, lindo, lindo e ainda mais que lindo!
ines
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