segunda-feira, 12 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


59 - Aparelhagem

O pai de Carlo, Genaro Miaggi, migrou do interior de São Paulo para o interior do Pará com espinhosa missão: superar uma desilusão amorosa, pela qual tentara matar um primo. Na Vila Concórdia, refez a vida: casou-se com Alda Kobayashi, inventou um sistema de manejo de gado (para terras sem água natural) e, em poucos anos, transformou leite em iogurte e montou o primeiro posto de gasolina. Carlo, filho único, cabelos claros e olhos castanhos e “puxados”, foi tristemente tímido na infância, mas melhorou na adolescência entre os carros no posto (às vezes como frentista) e aprendeu a dançar em festas populares. Aos 17 anos, veio morar, a contragosto, em Belém – o pai montou um equipado posto de serviços no Marco e parte da família transferiu-se para o bairro. Meses depois, o tio de Carlo que administrava os negócios na Concórdia acidentou-se, e o garoto foi enviado à cidade natal para ajudar. Em Concórdia, trabalhou duro no escritório, tratou com bancos e fornecedores e com os grandes clientes do posto. Um dia antes de voltar para Belém, compareceu a uma divulgada festa de aparelhagem. Na festa, típica daquele início de anos 80, Carlo conheceu Ana Carolina, que já o conhecia.

- Vi você no posto. Minha tia fala muito sobre sua família - disse Ana, apresentada por uma prima. - Nasci em Paragominas, mas moro há três anos em São Bernardo, interior de São Paulo.

(São Bernardo, de onde Genaro Miaggi migrara para a Vila Concórdia.)

Carlo e Ana Carolina logo começaram a dançar. Duas horas depois, saíram da festa, e se beijaram e beijaram embebidos por bilhões de estrelas. Ana estava não corada, mas brilhante, um brilho de dentro para fora, de tal forma que se afastou de Carlo e retornaram para o salão.

Dançaram outra vez de tudo, e se beijavam sob as luzes apagadas, e também sob as luzes acesas, Ana se recusava a voltar lá fora, para a privacidade estrelada, 'Celebration', Donna Summer, e ritmos caribenhos (a voz do Caribe, negra-marfim, era tão metalizada que se imantava: voz que saía das paredes sonoras da descomunal aparelhagem e se grudava - se atraía pelos ímãs - nos minérios em geral pelo salão). E foi o Caribe que grudou Ana e Carlo, mas não um ritmo quente, e sim uma balada: a balada mais linda que ouviriam.

O minuto que não se apagará no tempo - o que guardaremos na memória - é sempre a síntese de bilhões de minutos, situações, sonhos e sentimentos. Mas esse processo de circunstâncias precisa de um desfecho (fechar o ciclo) e, aí, elementos até bem fortuitos desempenham papéis extraordinários. A balada caribenha - metalizada, imantada, ritual - tornou-se inesquecível por três situações íntimas entre si: os beijos do casal adolescente; o fato de que, já de madrugada, o corpo precisara do auxílio do corpo para varar a noite, e eles receberam aquele respiro de adrenalina que nos redobra a energia e clarifica os sentidos (no caso, passaram a 'sentir' mais a música, o andamento, as belezas sutis); e, por fim, o suor.


Carlo e Ana Carolina estavam tão apaixonados que, até ali, é como se não tivessem se apercebido do suor: grudados, mas sem se importar, encharcados do próprio cheiro, sem se aperceber: durante a balada, tomaram consciência (sem uma só palavra) do suor a misturar-lhes, a uni-los para além do corpo e do acaso, e, eu diria, tiveram não consciência, mas uma iluminação - compreensão tácita entre si, sem palavras - dos próprios cheiros a defluí-los no vento, eternizando-os, aquele suor tão íntimo quanto um toque, e esse esfregar-se, empapar-se mútuos sem nojo, sem refluxos (ao contrário, cheiravam-se como a esbanjar-se) tornou-se tanto mais memorável por outra providencial iluminação e, quando a balada caribenha deu vez a outra, Carlo e Ana, sem palavras, fugiram da festa para o turbilhão de estrelas.

3 comentários:

Anônimo disse...

A música, desde sempre, embala grandes obras. Recorda da loucura que foi a trilha sonora de "Midnight Cowboy", "Luzes da Ribalta" e "Além da Eternidade"?
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Lembro de ter lido seu texto quando publicado, e ter gostado muito.
A trama inicial, simplesmente apresentava o personagem Carlo, para em seguida, lançá~lo numa festa de sentidos: entre estrelas, no claro, no escuro...
Então, vinham os ditos ritmos caribenhos, (que esbarraram na minha ignorância), em sequência Donna Summer, movimentava esta sonora crônica.Aí... meu amigo... pintou a voz negra-marfim: metal auto-imantável, que vinda da aparelhagem, se "grudava" pelo salão.(UAU!)
O texto foi num crescendo ... e tudo muito audível, imaginável " ... da sensualidade dos imãs sonoros ..." Carlo e Ana findam unidos numa balada onde "...já de madrugada o corpo precisava do auxílio do corpo para virar a noite ... passaram a sentir mais a música, as belezas sutis ..."

É , tudo vai do dia, da inspiração e da viagem !!!!
FIRME!!
PARABÉNS! SORTE!
UMA LUA PLENA PRA VOCÊ!
Abraço
Inês

Renato Torres disse...

Edson,

que beleza de texto, tão sinestésico que chega a resvalar no cinema. um prazer ler as tuas palavras, tão bem fornidas, escritas com a medida e a precisão de quem as conhece e as ama.

abraços,

r

edson coelho disse...

amigos, agradeço a presença e os comentários. é a paga pela ralação desse ofício. e não precisa mais.