segunda-feira, 19 de abril de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


61 - Improviso com tempo


Se o tempo fosse uma bola, eu teria oito anos e seria “gandula de estrelas”. Se fosse uma árvore, eu retornaria, com mil anos, para a beira do rio.

Se o tempo fosse uma cidade, eu compartilharia cevada e lúpulo. Se fosse o mar, eu incitaria um turbilhão de sereias.

Se o tempo fosse um poeta, eu quereria distância.

Se o tempo fosse tão somente a água, o mel não teria memória; se fosse vácuo, eu voltaria a voar.

Se o tempo fosse a mulher, eu investiria brusco e humilde; se fosse o filho, não haveria morte.

Se o tempo fosse um poeta – se o tempo fosse o Tempo - eu ficaria longe.

Se o tempo não fosse cego, eu seria um samurai; se não fosse neutro, eu seria pedra.

Se o tempo não fosse o homem, eu me converteria à obra; se não fosse em mim, eu desenterraria uma nova roda.

Se o tempo não fosse palavra, eu seria música; se não fosse o silêncio, eu não ouviria. Se o tempo não fosse o fim sem fim - se o tempo não fosse, simplesmente.

O cotidiano todo dia me vira a cara: se o tempo fosse, se o tempo não fosse, se fosse e não fosse, senão.

O tempo é o nada que é tudo e o tudo que é nada.

O tempo é o único deus de si mesmo.

Vou andar oitenta anos até entender o tempo.

Vou nadar oitenta anos até aceitar o tempo.

Vou vencer o tempo por um segundo.

Vou banir o tempo com a música; a música é a arte preferida do tempo.

O tempo é o único que é, no espaço; eu, sou e não sou; acima da linha do mar, fico da altura do tempo.

O tempo existe quando não existe; eu, penso. O tempo não pensa, logo, existe.

O tempo é o mais charmoso vilão de Quentin Tarantino.

O tempo até hoje lê o Sítio do Pica-pau Amarelo.

Escrevi quatro poemas sobre o tempo, que os ignorou.

Não vejo a hora de acertar as contas com o tempo.

O tempo detesta o domingo - a abrir e abrir as semanas fatigadas (que o contam), uma atrás da outra, portas num casarão infinito. (Se o tempo fosse o homem, sofreria até o não-fim.)

Dedico este domingo ao tempo.

2 comentários:

Inês Pereira (Bia) disse...

Gosto quando seus textos são assim intimistas ... sabes que podes parar o tempo... a cada instantâneo do belo ... a tempo pára. Quando determinaste o fim do teu livro, o tempo parou, a cada fim, o tempo pára. Guarde esse tempo.

abraço
ines

edson coelho disse...

inês, agradeço os certeiros comentários ao longo do livro. quanto ao tempo, já guardei: teci-o.