Te ver, um choque, um atordoamento.
Meus olhos se abriram tanto que ficaram cegos.
Um novo infinito umbilicado em ti,
um universo estourado à luz da tua sibila.
Teus olhos são o meu guia, meu mal, minha serenidade,
a minha eternidade de galáxias diminutas,
minha cartografia de desejos desmesurados e tranquilos.
O mel dos teus olhos compassa a mecânica celeste.
Me ver, para ti, o que foi?
Como me olhou o mar, o céu, as raízes, os rios, os seixos,
o asfalto queimado no lombo dos trópicos,
a piçarra, a bicicleta esvoaçando os distúrbios esburacados,
como me olharam a chuva e o vento, a brisa e a gata
que te arranhava para enfrentares o medo,
como me olhou o rio artesiano, o igarapé que chamavas de clara,
teus cabelos sem data, tuas narinas fundas através da terra,
tua língua surda através da música da dor? Lã enovelada de amor,
eu, e tua mão abriu-se em baque para aceitar o gesto que sou –
chama-o de amor, entrega-o a teu nascimento.
Assim se cruzam e inundam mutuamente os rios,
assim se embainham e desnudam as chuvas desde a infância,
assim o que fui se retoma em marco zero, e o que foste
se divide em duas esfinges, tu e eu equalizados em miragem,
e assim me mergulho pleno em ti, teu ser poroso como a água primordial,
assim emerges de mistérios enlameados e lavas o barro em volta,
e ambos nos fundimos em seixos, e escorremos em pedra,
e floramos em frutos ardentes de caroços flamados,
e nos cutucamos e ferimos e lambemos as feridas e nos cauterizamos
e renovamos da primavera para o inverno, e nos diluímos
do outono para o verão, e nos unimos e abolimos e ganimos e banimo-nos
em nosso ardor edificando cinzas
revoadas para novas chuvas
e nos amamos e tomamos e vivemos e matamos e nascemos:
e nos tornamos, os dois, fundidos, juntos como o sangue misturado
em nosso abraço estupefaciente, fundidos por mil anos do trabalho
do desejo e dos olhos reamados, assim nos calcarizamos, assim nos prestamos
ao magma e à clorofila, assim nos revoluteamos e nos tornamos
picos e encostas: juntos somos essa montanha, paixão, paixão,
renascidos da própria lava, ferida e cicatrizada em si mesma.
Essa montanha é mais vasta que a imaginação e mais pesada que a pluma,
mistura todos os tempos no delta nascente das lágrimas,
é rasteira como as sempre-vivas, é altaneira como os cedros,
essa montanha é impetuosa como um potro,
é suave como a contemplação do azul, é negra como uma apara no pulso,
essa montanha é surda como os trovões, é afiada como o duplo punhal
que entrete os amantes ao cair do céu, essa montanha é intransigente
e exigente e ameaçadora e opressora e tirana e aguçada e leve e suave e
esguia
e delicada e fina e esbelta e torrencial e nodosa e orvalhada e seca
e terrosa e grotada e gretada e ordenada e desgrenhada e entregue e
indomável,
essa montanha é indomável, indomável, pois seu destino é a tempestade,
essa montanha rompe para a tempestade, essa montanha nada, voa
para uma tempestade, ela nasceu para a tempestade, ela se formou para a
tempestade, ela reuniu todos os furtos e dádivas desde o nascimento
para que uma tempestade a desintegre com um raio descomunal
que nem um deus sonhou.
Mas o sexo é uma tempestade cega e mesquinha, o sexo é um raio
sem retinas, uma lâmina sem fibras,
e por isso a montanha, o raio, o sexo, o orgasmo precisam rastejar, sem entender,
precisam lamber os nódulos, arranhando a língua, precisam provar o
nojo,
fitá-lo até o asco e engoli-lo num cuspe de pequenas bolhas térreo-intestinas,
eis o pequeno portal para a montanha, eis a pequena fresta
para o raio descomunal: essa minhoca, vermelha e roxa, estriada em
fios concêntricos, que se alonga nos torrões molhados, e se encolhe
meio centímetro à frente, cada vez avante, meio-centímetro para onde?, para
quê?,
alonga-se, recolhe-se, meio centímetro, eis nosso infinito, friorento, eis o universo,
uma minhoca, um fio de nojo, vermelho, roxo,
que não podemos simplesmente oprimir com nossa bagagem lítica.
Evém a tempestade, a tempestade. Evém o peso e a leveza
do nosso amor sem começo nem fim. Amor que nos desmoronará
para que o tempo não mais se desvie em seus propósitos.
4 comentários:
E teus olhos cortantes,
amantes desvairados,
lambendo meus sonhos...
e mais fazendo sonhar...
Profunda e gostosa escrita, meu querido Edson - ...juntos como o sangue misturado
em nosso abraço estupefaciente, fundidos por mil anos do trabalho...
E a saudades doe, gostosamente... TUDO DE BOM!
aluíza! que bom, amiga, que você apreciou essa rasgação da alma através do corpo.
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