quarta-feira, 24 de abril de 2013

Dois poemas submersos


Mar

Os que, em ti, sentem náusea
varejam de remotos cemitérios.
O tempo vaza em ti como um galeão
carregado dessa substância estúrdia, a dor,
sangramento de corais, 
hemorragia do inconsciente
de tudo o que pereceu sem esgotar a fala.
E a ti os anos ocorrem aos milhares,
os arquejos que alquebraram os suicidas
insuflam albatrozes e golfinhos.
A eternidade vem dar em ti, mar,
humilde da proficiência
de tua monotonia alerta,
de teus moinhos de genes.
Acúmulo do imemorial, alinhamento
de surdas imaginações, em ti
o poema desafoga-se por compressão.
Viagem em si, mar, destino de todos os portos,
circunferência instintiva, bússola
dos quatro elementos. Aqui, cheguei.
Magma azul que refunde os raios,
plasma este sonho da palavra:
Quando eu for cremado,
que as cinzas encontrem o teu sal,
à margem onde desaguará sempre o rio da infância
sobre a pedra do meu canto:
que se consubstanciem no teu tempo imutável.


Para sempre

À beira rio, onisciente como Hefesto
diante das forjas,
acompanho a travessia:
a quilha revelando a infância,
formando o quintal balbuciado de sonhos,
a varanda pendida do talhe do açaizeiro,
coalhos de estrelas pela grama,
o primeiro livro, a menina encaracolada,
o êxtase no início da carne,
o desejo pelo mar,
o poema zurrando sobre a música,
a mulher estrangeira que viveu uma só noite,
a esperança, a utopia,
a heroína sangrada numa poça de vinho,
o último dia na universidade,
o último encontro, despedida,
o favo do olhar, o mel amargo,
tudo a quilha revela
e a passagem do barco desmancha,
como o amor eterno, que passa a cada dia:
para sempre,
o esqueleto arenoso do rio.

II

Horas depois, porém, o rio amazônico
se torrencia, a maré arrebenta no cais,
o caudal joga com a noite
e sereias se lançam dos mastros
sobre a água viva.


2 comentários:

Anônimo disse...

Dois lindos poemas, Edson, entre o sal e as lembranças, na perspectiva cíclica de viver e de morrer. Penso que voltaste ao rio de tua infãncia, no reencontro com teu talento. Os poema me emocionaram, pois me transportaram a vários lugares, da minha própria infância. É um poema de "deixar em paz", uma "tela, deslumbrante e bela"!

Parabéns,bj! Cuide-se bem!

ines

edson coelho disse...

eita, inês, você sempre na veia. a infância é um dos nomes da poesia. ainda mais numa perspectiva de "instante paralelo", à margem e para além do tempo. obrigado.