As asas e a
lágrima
A chuva revirava a noite do vilarejo;
ao longe, as bandeiras que restaram do São João,
cores plastificadas entre árvores retorcidas;
cores plastificadas entre árvores retorcidas;
muitos viram, pressentidos: semelhavam
bandeiras
desprendidas, mas eram asas, um par de asas
arrastando-se em chumbo pelo ar devastado.
Alguns até tiveram o impulso de sair à chuva,
ajudar, talvez, mas como? Ninguém estranhou
quando as asas, num esforço arquejante,
se arrojaram à frente, transpassaram a janela
e planaram por instantes, pousando sobre a
mesa
na casa de madeira. Em segundos, dezenas de
pessoas
se admiravam em volta, silenciosas, sem medo,
e as asas evocavam um ser humano, mas sem
corpo,
estavam exaustas, a respiração trêmula,
prostrada,
e queriam descansar, mas sem olhos. A água
lhes escorria,
penetrando a madeira da mesa, e se notava a
pele gretada,
como que percorrida por um deserto, cabelos,
não penas,
ralos, finos, sobre a pele membranosa, e o
silêncio
se aconchegou ao trepidar da chuva, e as asas
dormiram,
palpitando na mesa. A dona da casa envolveu-as
num lençol, e pôs sobre o colchão na própria
sala,
e em silêncio todos se deslumbraram,
e o silêncio se alteava com o esmaecer da
chuva,
e quando tudo era silêncio, um temor se instalou,
como se, de hora pra outra, algo
extraordinário
se sucedesse – bom? ruim? Quase todos velaram
por toda a noite, o temor silencioso, e aos
primeiros
raios as asas se mexeram, e se desvencilharam
do lençol,
não tinham olhos, mas estavam serenas, e percebiam
cada
pessoa presente. Minutos depois, numa
vibração
que se aproximava de muito longe, cada um
começou
a lagrimar, sem razão - pareciam tocados pela
mesma
lágrima, e escorriam a mesma dor, mas não - a
lágrima
era a mesma, mas a dor era de cada um – como
num
chamado: deixa a dor entrar, pelas mãos,
pelos braços,
deixa a lágrima percorrer o corpo e a ela
afluírem
os desenganos, as frustrações, teu sofrer
resguardado,
teu brilho pilado, teu calar heroico, e
depois do corpo
o pensamento cabisbaixo, o sentimento deixado
para trás,
e antes do corpo, antes da pedra, da seiva, a
dor primeira,
gêmea da luz, a dor que a própria vida
arrasta
como asas presas a invisíveis grilhões,
asas-grilhões,
a dor que suturou o universo do teu corpo
antes do fogo fundir na água o mineral do
nascimento:
deixa a lágrima rolar a dor que nunca
conhecerá
a si mesma.
Embebidos da lágrima, todos despertaram para
as asas
repentinas, esvoaçantes, alçando-se rumo à
janela
e se desvanecendo em sereno ensolarado, para
espanto
das crianças.
2 comentários:
Edson...li teu texto! E a lembrança de outros textos se misturam com o teu, e a memória conserva muitas recordações que abrem a claridade! Vejo o diálogo poderoso com outro texto, um grande cosmo dentro de outro, pra se brincar de pensar e desnortear a inteligẽncia, porque ler um texto é deixar rodar a roda do encantamento.
Parabéns!
:* inês
e o encantamento é sempre movido por outra roda,a do mistério - todo encantamento é uma espécie de mistério aflorado. valeu
Postar um comentário