terça-feira, 15 de setembro de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


37 - A inveja e o perdão

Carnaval é época de perdão, mesmo por que não há perdão maior que a alegria. Quando o carro de Momo passar, ponha nele todos os dramas, reais e imaginários, a falta de grana, de tempo, o estresse, o tédio, depois, sentado no paralelepípedo da calçada, sobrevoe como pluma este Brasil girado a pandeiro. Bem, como já passa o carro de Momo - e o leitor terá que me perdoar -, vou aqui despejar o coração.


Costumo dizer que não sou do interior, sou do mato, e meu universo infantil era mais interno que externo, mais o literário que o “real”. Este contato pródigo com o ideal (inclusive como coroinha na Igreja) conferiu-me temerária pureza d’alma, e o fato é que só aos 35 anos flagrei-me com inveja. A sensação durou uns dez minutos, e foi como uma descoberta: então isto é que é inveja! Depois disso, lembrei, claro, que amargara antes o duro sentimento, só não conferira a devida nomenclatura.


Também durante aqueles dez minutos descobri que sentimos inveja, sobretudo, de quem amamos. Quando não amamos, o sentimento vira justiça social, ou genuíno desdém, ou cômoda ignorância. Quando nos é uma pessoa cara, o coração, tão humano, cai como um patinho na lagoa do comum, e impõe ao amor a mais constrangedora das prendas.

O episódio de inveja me fez percebê-la, no cotidiano, de forma instantânea; e, quando detecto-a em mim, gracejo comigo e logo fico feliz com as gargalhadas do objeto de secação. Também fiquei mais atento ao Outro: às situações em que, por alguma fatalidade, eu pudesse causar inveja. Sendo inevitável a todos e a todos nociva, a inveja gera – ou deveria – uma relação de mão dupla com o perdão, que por sua vez é recíproco em si: liberta tanto o agressor quanto o agredido.

Lembro que João Paulo II, ao abençoar o homem que lhe tentara assassinar, comentou a necessidade de se perdoar o semelhante, num mundo falto. Como nos falta grandeza de papa, aproveitemos o carnaval para lavar a alma, para atirar a Momo o rancor, a vaidade, os sentimentos mesquinhos, para dizer eu te amo e tantas frases sem setido.

O carnaval de fato tudo pode, se é fantasia, se é um faz-de-conta inflado pelo extravasar de todos, perfeito como coração de mãe. Eu hoje também quero pedir perdão ao carnaval, e quero perdoá-lo, e que me perdoe o melhor inimigo, a quem perdôo, e que me perdoem as árvores, as mulheres e as crianças, e me perdoem os pobres e os ricos, os doentes e os super-atletas, e que eu possa perdoar as cachoeiras sujas que me banham e limpam.

Aproveitemos que Gregório de Matos era da Bahia - terra de ferveção -, para citar-lhe um soneto famoso, em que, quanto mais peca, mais concede a Deus a oportunidade do perdão. E aproveitemos que Chico Buarque é carioca, carnavalesco por excelência, para amarrar de novo nosso paralelismo: na marcha “A noite dos mascarados”, os foliões se aproximam sem ter como ver-se as faces, “Eu sou Colombina”, “Eu sou Pierrô”; a folia chega ao auge, e os pretendentes já não precisam saber quem são (“Não me diga mais quem é você”), pois, carnavalizadas as diferenças, ou somos todos iguais ou no mínimo harmônicos, “Seja você quem for/Seja o que Deus quiser”.

E também, como não?, aproveito para perdoar a mim mesmo, para atirar ao carro de Momo as minhas faltas insubstituíveis, meu descompromisso com a saúde, meus adiamentos, minhas ânsias, minha inveja e minha vaidade, minha arrogância e falsa humildade, meu desesperador desgarramento do real, vou entupir com tudo isto o carro dos milagres, digo, de Momo, e que Baco siga incansável em sua predileção por Belém, e que a folia nos digira como um fígado social, um fígado que opera na praça, a céu aberto, e que, sobrevoado daqui - do paralelepípedo da calçada - parece o Afoxé do Guarda-Chuva Achado.

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